Wednesday, September 27, 2006

O Estranho Caso do Cachorro Morto (em Atibaia)

Dois anos e meio de trabalho no fórum de Atibaia me ensinaram: o simples modo como alguém bate na porta fechada e entra na promotoria já é suficiente para indicar se vou ou não ter problemas. Sinto arrepios quando, antes do corpo, aparece uma cabeça tímida em uma fresta, espaço entre uma porta cautelosamente pouco aberta e o batente. E a pergunta: "Posso incomodar só um minutinho?". Ai. Lá vem. Pode, né. E o dono ou dona da cabeça mais do que depressa entra de corpo, alma e preocupações na minha salinha, para contar suas aflições jurídicas. E nunca dura só reles sessenta segundos. Senta que lá vem a história.

Ontem, após a costumeira hesitação para percorrer os poucos metros entre minha porta e minha mesa, veio a denunciante. Abriu pastinha, puxou boletim de ocorrência, papelada, fita de vídeo, álbum de fotografias e, com pesar, anunciou o bárbaro homicídio do cachorro. Não cachorro dela, mas de uma veterinária. Fui comunicada não na qualidade de promotora de justiça do júri de Atibaia, uma das minhas funções, mas de promotora de justiça do meio ambiente daquela cidade. Cachorro = fauna = meio ambiente. Esse foi o raciocínio da moça. Hummm. Sei. Tá, vai, pode contar o caso. E ela contou com detalhes. Ignorando a promessa do minutinho.

Entendi o seguinte: o cão, pós-operado, estava no quintal da veterinária. Ganiu durante a noite. Um ser demoníaco e insensível invadiu a casa e, a golpes de facão, degolou e esquartejou o outro animal. Evadiu-se na calada da noite, deixando uma pegada no muro escalado (logo me lembrei de um livro, "O Estranho Caso do Cachorro Morto", escrito por Mark Haddon, inglês. História de um menino autista que tenta desvendar o assassinato de um poodle. Ganhou prêmio importante e tal, mas achei meio chatinho). A denunciante: "as fotos do cadáver estão aqui para....". Epa! Nem vem! Não preciso ver foto nenhuma, acredito, acredito! Sou como o molequinho daquele filme de suspense com o Bruce Willis. I see dead people. Todo santo dia encaro laudos mostrando gente perfurada, baleada, esmagada, decomposta. Mas ainda não desenvolvi preparo espiritual para espiar as entranhas de um canino. Pulemos a parte das fotografias.

Eu já olhava tristemente para as pilhas de processos sobre a minha mesa quando avançamos para o nono, décimo minutinho de conversa. E veio então o pedido. Porque ninguém gasta seu tempo na frente de um promotor de justiça, a não ser que tenha algo pra postular. E geralmente esse algo é...justiça. Foi então a mim pedido que eu "só" telefonasse para a delegacia e pedisse para o delegado dar uma "prensa" (!) no principal suspeito do crime, o vizinho. Assim, ele fatalmente confessaria o crime durante o interrogatório. Imaginei aquela cena clássica de filme: quarto escuro, meliante sentado em uma cadeira, luz na cara, policial fazendo carinhos e o doutor berrando: "Assina aí, safado: 'matei o Bolinha'!". Bolinha é nome fictício, porque não sei o nome real do bicho. Eu poderia argumentar, explicando à inconformada que abuso de autoridade e tortura também são crimes...e até mais graves do que maus tratos de animais, dano, invasão de domicílio (os crimes do caso em questão, pois, obviamente, o Direito Penal só admite homicídio se for de gente). Mas fiquei quieta, juntei as provas apresentadas (que incluíam laudo de exame necroscópico de dar inveja à equipe de produção do seriado C.S.I.) e garanti à reclamante que, tão logo o inquérito policial chegasse ao fórum, eu iria me empenhar para que o responsável sentisse os efeitos da mão pesada da lei. Da lei.

Cachorros. Por que cachorros provocam tamanha sensibilização? Fiquei pensando. Não é somente devido à, digamos, fofura. Gatos não causam tanta empatia, e são engraçadinhos também. É que cachorros juntam a tal fofura com....bajulação. Cães são uns tremendos puxa-sacos. Sujeito pode ser o pior terrorista islâmico ou um verme desprezível presidente dos EUA execrado pela Humanidade. Mas não faz mal. Ele certamente será recebido de patas abertas pela comunidade canina, se trouxer biscoitinhos de leite, um sorriso no rosto e disposição para uns afagos na cabeça. E isso comove. O "homicídio" do Bolinha será futuramente julgado por um juiz. Mas, se fosse parar no Júri popular, o julgamento já estaria ganho. Eu conseguiria a condenação do meliante, fácil, fácil. Bastaria escolher juradas vovós, titias, aposentadas, mostrar as fotos da carnificina e....pronto. Sete a zero em tempo recorde. E ainda teria que providenciar escolta policial para o réu, cordão de isolamento para salvá-lo da multidão enfurecida na porta do Plenário. Agora, se a vítima morta fosse um feio, careca e barrigudo - como talvez seja você - eu teria que suar a beca, gastar minha retórica e me desdobrar muito mais para botar o acusado no xadrez. Não duvide. Sorry, é a vida. São milênios de simpatia humana pelos canídeos, afeição que supera a boa-vontade entre os homens. Pois é. Bolinha, minha primeira vítima de três patas. É, três. Porque, além de tudo, era amputada.

2 comments:

Cristina said...

Olá! Vim parar no seu blog por algum caminho estranho relacionado ao Franz Ferdinand... rs
Gostei muito. Você é muito culta, tem bom gosto e escreve bem. Vou linkar pra me lembrar de vir ler sempre.
beijo!

Anonymous said...

Homicídio de um cão?!
acho q é assim que seria um episódio de CSI escrito por Wayne Coyne!!
freak, freak, freak...
Bjos Ana