Wednesday, January 17, 2007

Dor



"I hurt myself today/To see if I still feel/I focus on the pain/The only thing that's real/The needle tears a hole/The old familiar sting/Try to kill it all away/But I remember everything/What have I become?/My sweetest friend/Everyone I know/Goes away in the end/You could have it all/My empire of dirt/I will let you down/I will make you hurt/I wear this crown of shit/Upon my liar's chair/Full of broken thoughts/I cannot repair/Beneath the stains of time/The feelings disappear/You are someone else/I am still right here/What have I become?/My sweetest friend/Everyone I know/Goes away in the end/You could have it all/My empire of dirt/I will let you down/I will make you hurt/If I could start again/A million miles away/I would keep myself/I would find a way". ("Hurt", Nine Inch Nails).
Em 1842, nos Estados Unidos, Crawford Long mostrou ao mundo, pela primeira vez, como evitar a dor. Long, médico, percebeu que o éter sulfúrico poderia ser usado para abolir a consciência e o sofrimento de pacientes submetidos a cirurgias. Possível, então, ferir e não impingir dor. Graças ao pioneiro doutor, sem que doentes sentissem absolutamente nada, partes do corpo humano passaram a ser abertas, cortadas ou amputadas. E espetadas. Era a descoberta definitiva da anestesia.
Mas há gente que prefere a dor. Gente que nega qualquer recurso que traga alívio ou alento. Porque a sensação da dor é a última prova de que ainda existe vida.
Amedeo Modigliani nasceu em Livorno, na Itália, em 1884. Estudou arte clássica e renascentista em sua cidade natal e mudou-se para Paris, querendo ser escultor. Suas obras eram únicas: figuras humanas marcadas por traços sensuais e alongados. Esculturas que eram a perfeita fusão das influências de artistas que conheceu (como Picasso e Cézanne), de sua própria formação (era grande admirador da arte grega e africana) e de uma vida de excessos. Boêmio, Modigliani bebia na mesma proporção em que se drogava. O dinheiro era insuficiente para sustentar a dependência química e financiar seu ofício. Não conseguindo mais custear material e instrumentos para esculpir, Modigliani começou a pintar. Veio a tuberculose. Mas o artista não procurou a cura. Preferiu o álcool e o haxixe como anestésicos e catalisadores da dor que crescia. E pintou. Criou retratos impressionantes de mulheres com olhos amendoados e vazios, lábios delicados, pescoços delgados como cisnes. Quadros lindos e tristes que, terminados, eram dados em troca de copos de vinho. Aos 36 anos, sucumbiu finalmente à dor e morreu no hospital.
Anos 60, Estados Unidos. A carreira do cantor country Johnny Cash começa a decolar. Cash, então, vicia-se em anfetaminas e barbitúricos.
Apaixonado por June Carter, Cash casou-se, abraçou a religião após uma tentativa fracassada de suicídio, e conseguiu atravessar anos sem consumir drogas. Mas, na década de 80, o cantor sofreu um ferimento no estômago. Buscou nas drogas alívio para as dores. Mais uma vez viciado, lutou para recuperar-se. Quando teve que se submeter a uma cirurgia cardíaca preventiva, Johnny Cash, exausto, escolheu corajosamente a dor: temendo nova dependência durante o pós-opertório, recusou-se a tomar qualquer tipo de remédio. Era o início do fim da sua parceria com as drogas.
Curiosamente, Johnny Cash alcançou a redenção completa graças a outro músico. A um artista que transformou a própria dor, frustração e revolta em rock metálico que explodiu a partir da década de 90. Quando criança, o americano Michael Trent Reznor foi considerado gênio por sua professora de piano clássico. Na faculdade, estudou Ciência da Computação. Mas não concluiu os estudos. Escolheu a música, o rock. Conhecendo programação de computadores e naturalmente talentoso para melodias, Trent Reznor compôs letras, criou arranjos e produziu suas próprias músicas. Era o início do "Nine Inch Nails", banda de um homem só. Reznor acompanhado por músicos que, até hoje, se revezam nas gravações de discos e apresentações ao vivo.
O Nine Inch Nails popularizou o gênero "industrial": rock agressivo impulsionado por intervenções eletrônicas.
Mas, da mesma forma que ocorrera com Johnny Cash, o reconhecimento e a pressão pesaram sobre os ombros de Trent Reznor. Vieram a depressão, as tentativas de suicídio, o álcool. E as drogas. Se a desesperança de Modigliani gerou telas incríveis, da angústia de Reznor floresceu "Hurt", em 1994. A canção, que está no CD "The Downward Spiral", é um lamento. Voz cansada, arrastada (e valorizada por piano e bateria que sabem se manifestar nos instantes precisos) vergonhosamente admitindo que a dor provocada por uma agulha é a única coisa real para quem afundou na solidão (http://www.youtube.com/watch?v=tgSWRicWIy4).
"Hurt" tornou-se, junto com "Closer", a música mais pungente do Nine Inch Nails. Um produtor musical, conhecido de Trent Reznor, sugeriu ao velhinho Johnny Cash - representante de um estilo musical diametralmente oposto do rock industrial - que gravasse uma versão de "Hurt". Cash ouviu a obra de Reznor e reconheceu que se tratava de um verdadeiro passeio ao inferno. Feito por um jovem que, como ele, também já havia estado lá. Para Cash (e para muitos, inclusive para mim), "Hurt" é a mais bela música existente sobre dor, vício, drogas.
Johnny Cash elaborou sua versão pessoal para "Hurt". Vocal grave, piano, violão. O premiado videoclip lembra uma confissão religiosa. Aos setenta anos, Cash usou "Hurt" como último anestésico para recordar o drama e o sofrimento de sua relação com os tóxicos. Quatro meses após o término das filmagens, morreu. O vídeo ficou: http://www.youtube.com/watch?v=Na-lIw8kxEU
Modigliani, Johnny Cash e Trent Reznor. Gente para quem a descoberta de Crawford Long....de nada serviu.

8 comments:

Anonymous said...

Para mim, a versão do Johnny Cash é a definitiva. Não sei, parece mais aflita, perturbadora que a original. Aquela voz grave e arrastada, violão indolente.

Acho que a decadência física de Cash ajuda a reforçar esse sentimento. Figura interessante, teve uma bela história de vida.

Galaxy Of Emptiness said...

Ah, sou mais a original....mostra bem aquilo que eu mais adoro no Reznor: a formação clássica que ele, esperto, soube mesclar com eletrônico. O andamento de "Hurt", os crescendos...quem já estudou piano (eu tocava, milênios atrás) reconhece as influências do cara. No fundo, ele é um Beethoven moderno, hehe!
Ah, esqueci de colocar no texto: existe uma versão de "Hurt" como canto gregoriano(!). Ainda não ouvi, mas deve ser engraçado frades cantando "the needle tears a hole", "wear this crown of shit"...

Anonymous said...

Canto Gregoriano???

Isso me faz lembrar meu grande (anti)herói, o Jeff Beck.
Certa vez um jornalista questionou a fonte de inspiração para tirar certas sonoridades, digamos, exóticas, presentes em seu disco. A resposta do lorde rebelde: "Passei os últimos dois anos ouvindo o cd do coral de vozes femininas da Bulgária!!! E isso realmente mexeu comigo.".

Detalhe, o disco em questão era uma mistura de techno e drum-and-bass.

Deve haver alguma ligação entre depressão, dor e....cantos!

Anonymous said...

Hurt é incrível. As duas versões eu diria.

Anonymous said...

Excelente texto Ana!
Bem, entrando na conversa... eu acho as duas versões ótimas, mas ainda prefiro a do Jhonny Cash, e motivos naum faltam, talvez porque, como foi dito, ele consegue passar uma emoção incrível com sua voz, naum só nesssa música (apesar do Reznor fazer o mesmo). Talvez porque eu toco violão e achei fantastico a forma como ele conseguiu tocar extremamente simples, mas deixando lindo. Talvez pelo clipe, que ele conseguiu revisitar a sua vida e carreira em apenas 4 minutos! Ou talvez porque essa musica tocou no Smallville numa cena prá lá de emocionante...
Em tempo: Bono do U2 disse q chorou mais no clipe do Cash do q num filme de 2 horas!
Bjos Ana.

Anonymous said...

estive ouvindo as duas versões e, definitivamente, não consigo decidir qual é a melhor. mas sem dúvida o clipe do johnny cash é de chorar.

...

aliás; falando sobre seu livro, diário, o escritor chuck palahniuk disse, em entrevista publicada pelo estadão sábado passado:

o livro demonstra como cada artista lida com sua dor. qualquer pessoa criativa reconhece o dom ou a oportunidade ocultada dentro do sofrimento. uma pessoa criativa processa a dor em um trabalho artístico, superestimando-a e eventualmente esgotando toda a carga emocional da situação.

...

como eu gostaria de ser uma pessoa criativa.

Anonymous said...

JOHNNY CASH RULES!!!!!!!

Anonymous said...

Para quem quer saber mais sobre Modigliani tem o filme com o mesmo nome, apesar de exagerado vale a pena.

Sou mais Johnny!!