Destemido o moço aí da foto. Deu a cara para bater justo no país do politicamente correto. Há uns meses seu livro foi publicado nos EUA por uma pequena editora. Emergency Press. É, eu também nunca ouvi falar. Nem da editora, nem dele. Mas na contracapa uma frase entre aspas aparece destacada. Curtinha, nem dá para dizer que seja uma resenha. É mais uma constatação do que um elogio. "Heavy like the dark stuff itself." Pesado como a própria heroína. É a opinião de Mark Lanegan. E se eu recomendo livros para o Lanegan, justo então que eu leia um por ele "comprovado e atestado", vai. Whatever. Comprei pelo Amazon e li "American Junkie", que na versão e-book do Smashwords custa só nine bucks. Foi a melhor coisa que eu fiz nesse ano. Já terminei a leitura faz uns dias. E me sinto órfã. Bateu aquele banzo pós-livro sensacional. Aquela melancolia por saber que vai levar tempo para um livro tão bom quanto esse me ganhar. Aquele desânimo só de pensar no quanto vou ter que esperar até o lançamento da próxima obra do cara. Se ele lançar. Tudo isso porque "American Junkie" é perfeito em todos os aspectos. Tom Hansen não escreve bem. Escreve absurdamente bem. Redação límpida, inglês descomplicado, direto, coloquial mas elegante, mesmo usando gírias. Frases curtas, estendendo-se por no máximo três linhas até as palavras serem barradas por um ponto final. Como tem que ser. Em regra, três páginas formam cada capítulo. E cada capítulo lembra uma pequena crônica, terminando de um jeito que faz a garganta da gente sempre dar um nó. Hansen é habilidoso o suficiente para montar textos que misturam, na dosagem certa, cultura pop, reflexões irônicas, tristeza, música, romance. Em nenhum instante a história se perde, o ritmo cai ou a leitura se dispersa. Não há capítulos dispensáveis, parágrafos deslocados, frases sem sentido.
O estilo de Tom é muito semelhante ao de outro autor incrível, que eu adoro: Alan Lightman. O que eles têm em comum? Lightman é professor de redação criativa no Massachusetts Institute of Technology. Hansen tem pós-graduação na mesma disciplina. E só. As diferenças? Brutais. Alan Lightman, 61 anos, é cientista. Tom Hansen, 48, viciado e traficante de heroína. Aparentemente aposentado nas duas funções.
Tom mora em Seattle. Nos anos 90 foi ele o traficante que abastecia de heroína Mark Lanegan, Layne Staley (o falecido vocalista da banda Alice in Chains - com o qual, aliás, Hansen muito se parece fisicamente), Kurt Cobain. E o bacana do livro reside justamente aí: não, não é uma história de fofocas para fãs de banda alguma. Lanegan e Staley são citados em um único capítulo: Tom ia diariamente ao apartamento do Mark, descrito como um lugar caindo aos pedaços, atolado por pilhas de discos e...livros (ahá - eu adivinhava!). Um Kurt Cobain já famoso também cruzou o caminho de Tom, que registra: "it was very strange, he was one of the most visible people on Earth and I was the most invisible, and yet I had something he needed". E pronto, acaba aí a participação dos famosos, meros coadjuvantes em uma autobiografia que se sustenta exclusivamente na sublime capacidade de Tom se fazer interessante.
"American Junkie" abre com Tom quase morto: é internado em UTI desnutrido, abatido por hepatites de A a Z, pele, músculos e ossos literalmente devorados pela heroína. Na capa da biografia, a ilustração é o croqui do primeiro exame do autor após a internação, mostrando verdadeiros buracos nas costas, batatas-da-perna, bunda. Partes do corpo onde Hansen injetava a droga, depois que as veias dos braços se tornaram imprestáveis. Ao longo da história, Tom Hansen tenta entender e explicar como e porque a droga se tornou seu ganha-pão...e o pão. E é aí que o livro brilha. Porque o próprio Tom admite que não sofreu nenhuma tragédia pessoal que desencadeasse o consumo ou a vontade de traficar: infância humilde, mas filho de pais carinhosos, bonito, namoradas e amigos presentes, oportunidades para estudar e trabalhar na legalidade. Não existe vergonha, arrependimento, mea culpa, "não faça isso em casa". Nem redenção ou pedido de desculpas. Mas ao mesmo tempo não há apologia alguma ao uso de drogas ou ao tráfico. Hansen só não esconde que era bem feliz tocando o próprio negócio sem patrão, sem pretensões de riqueza, faturando o suficiente para não ter preocupações em saldar dívidas. Tom não posa de injustiçado social e deixa bem claro que foi traficante e viciado por - e não por falta de - opção. E não espera o perdão de ninguém. Muito pelo contrário. Ele tenta soar o mais antipático e sarcástico possível: é seco e impaciente com os enfermeiros e médicos que tentam curá-lo, revela que uma menina morreu de overdose minutos depois de ter vendido heroína para a moça, conta que dedava traficantes mais graúdos para negociar sua liberdade com a polícia, lembra que enquanto dirigia pelas ruas de Seattle, para fazer as entregas, ironicamente era o único motorista a respeitar o limite de velocidade. É curioso: Tom Hansen dá uma série de motivos chocantes para qualquer um não comprar e não ler a sua biografia. O trecho na contracapa já dispara, sem papas na língua do escritor: "...It's a lie what they say about the drug world, that it's a savage place full of backstabbing sociopaths. Some parts are that way of course, at least I suspected there were, however I had never seen it. I'd found a niche that provided safety and security. No one was going to fire me, demote me, ship my job overseas, cut my hours or my pay. The drug business was impervious to economic forces and manipulations, it was recession and depression proof because it was outside the other economy, the corrupt economy. There was no living from paycheck to paycheck, pinching pennies. There were no worries, as long as I took a few simple precautions. People would always need drugs. They didn't need to be talked into it with some tits and ass on a billboard. They just needed them. It'd been that way since the beginning of time and it would be that way until the end".
Bom, mas eu li o livro. E adorei. E ninguém precisa concordar ou discordar do autor para identificar um livraço. Que poucos vão se dispor a comprar. Tom fez as contas: vendeu heroína 65.700 vezes, foi o melhor e mais confiável traficante de Seattle. Talvez não venda nem 657 livros. Pena. Ele é hoje um dos melhores escritores americanos vivos. Tomara que deixe de ser uma das pessoas mais invisíveis do planeta.
6 comments:
Eu,leitor assíduo do blog da Ana,não pude deixar de comentar sobre esse post! hahaha,livro que vou começar a ler amanhã e que só pela sinopse "politicamente incorreta" nos faz querer ler ao menos um capitulo sobre o "cultado" sub mundo das drogas de Seattle nos anos 90!
Nice Post Ana!
Obrigada! Puxa vida, um leitor assíduo! Eu que não sou assídua no meu próprio blog. Agora até fiquei envergonhada.
Hahaha,Se envergonhar de ter um blog desses?:)
"Next post,go,go,go,go Ana!"
Quando li Junky, do Burroughs, pensei o mesmo que você: como é que pode escrever tão bem? E os dois tem a mesma fixação na heroína, com a diferença de que o Burroughs, que era de família rica, achava uma estupidez vender a droga quando ele mesmo podia consumi-la... São os improváveis malditos da literatura, que sem saber devem ter bebido na fonte de Rimbaud, Genet e outros... Muito bom!
Caramba, nem li o livro mas só pela sinopse já virei fã do cara. Parece ser algo na linha de Bret Easton Ellis / Bukowski / Irvine Welsh...
Pô gostei pacas do espaço , várias dicas e referências bacanas. Já vi que vou baixar e catar muita coisa depois que der fuçar o blog com calma.
Valeu! Bjs!
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