O alemãozinho gente-fina me avisou que a barra estava limpa: "vai agora, não tem ninguém vendo!". Rezando para não ser vista, eu passei pela cortina preta, subi a escadinha caracol na velocidade de um raio. Após o último degrau, o início de um corredor estreito: uma fila de portas na parede esquerda e outra na parede direita. Lá na frente, direita, luz saía de uma sala aberta. Talvez fosse aquela. Corri, livro na mão. Brequei as botas no carpete quando cheguei na entrada. Tinha gente dentro. Em um canto, pessoas sentadas em semicírculo olharam para mim, expressão de dúvida: "quem é você?". No canto oposto, de pé e ao lado da pizza sobre a mesa, ele me viu. "Ah...é você.", disse. E Mark Lanegan sorriu.
Meu, tanto lugar bacana em Berlim e Soulsavers fechou de fazer show logo no FritzClub im Postbahnhof. Não que o clube seja ruim. Estilo galpão, jardinzinho pra tomar cerveja, bar com pista para DJ. Legal. Mas eu desconfiei que havia ido parar na PQP não só porque o Fritz fica quase sob a linha do trem, solitário em um trecho de avenida no qual no pasa nada. Há outra razão. Vizinho ao clube, a perder de vista sentido norte, sentido sul, o Muro. Metros e metros de concreto ainda intactos. Uma massa de cimento e tijolos, que um dia cortou uma cidade ao meio, colorida por grafites. Pouco se vê dos restos do Muro no Centro turístico e residencial de Berlim. Símbolo da vergonha, foi quase todo destruído. Mas nas imediações do FritzClub ele foi poupado. O local é tão deserto que, acho, na data da Queda não havia uma alma presente para dar umas boas marretadas naquele troço.
No corredorzinho, Mark Lanegan encostou na parede, flexionou uma das pernas e me encarou. Levantou a mãozona tatuada e, antes mesmo que eu perguntasse, foi abrindo os dedos à medida em que contava: "Londres....São Paulo....Lisboa....eu me lembro de você em todos esses lugares. E agora aqui. E você sempre me dá livros!". Bom, faltou Bruxelas (em Bruxelas ele não me viu. Só porque eu me manquei e o deixei em paz, hehe). Fiquei com vergonha, quase soltei um..."ah, mas hoje eu apenas passava por essa rua tão...tão...ehh...interessante, fazendo um emocionante city tour embaixo do viaduto sujo e mijado da linha do trem, quando vi três pessoas aí fora no portão, concluí que o galpão bombava e resolvi entrar. Estava procurando o banheiro quando - ah, que mundo pequeno - te vi aí entretido com essa mesa de comida gordurosa!". Ao invés da piadinha, minha voz mais cor-de-rosa, florida e dengosa: "Noooossa....você se lembra mesmo de mim, hein!!".
Comentei sobre o show de São Paulo, que foi tão divertido, gente berrando enlouquecida. "São Paulo! Eu ADOREI aquele lugar!". Lançou um olhar para meu braço esquerdo, sorriu. Uau. Senti sinceridade, ele não estava elogiando Sampa só por educação. Putz, isso que dá beber pouco; se eu não tivesse tomado apenas uma Heineken, teria saído isso: "Que coincidência, meu Deus, eu também ADORO São Paulo. Por acaso, moro lá! A pizza é maravilhosa! Moremos os dois lá, então! A cidade é cinza, perfeita para inspirar suas músicas depressivas! Visto de permanência? Tá bem, vai, eu não me importo de casar com você, tudo em prol da Música!".
E por que não morar em São Paulo? Nada impossível. Chrissie Hynde, do Pretenders, teve (ou tem) um apê no Centro da cidade. Nick Cave foi meu vizinho, morou na Pompéia e vivia nos botecos. Aliás, vi o Cave em Londres, assinando autógrafos em uma livraria. Bronzeado, testa duas vezes maior do que o resto do rosto. Jeitão simpático e atencioso. Eu quase entrei na fila de fãs, mas então teria que comprar o novo livro dele. Que conta a história de um coelho psicótico e tarado. Meu amor ao dinheiro bem gasto falou mais alto.
- "Mark...".
- "Humm..?"
- "Você tá fazendo um disco novo?"
Ele fez uma cara engraçada, tipo..."ai, se eu ganhasse um dólar cada vez que me perguntam isso..."
Ele fez uma cara engraçada, tipo..."ai, se eu ganhasse um dólar cada vez que me perguntam isso..."
- "Estou. Entre uma viagem e outra das turnês eu ando compondo umas músicas..."
- "Oba! Isso é bom, porque você viaja bastante!"
- "Eu, é!? Pois é. E você também!!"
E eu nunca vi Mark Lanegan rindo tanto...
Ah, foi tão legal! No fim, Mark Lanegan ganhou mais um livro assinado por mim (que devo ser a única fã do mundo que deu mais autógrafos para o seu ídolo, ao invés de ter pedido - 4 dados contra 1 recebido no braço). E - que bonitinho! - ficou vermelho na hora da despedida. Igualzinho ao Mathias ficava, meu coleguinha no pré-primário, em 1981.