Monday, September 14, 2009

Jello Biafra em Londres




“Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate”. Em sua obra principal, “A Divina Comédia”, o poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321) alertou os infelizes prestes a atravessar os portões do Inferno: “Deixem toda esperança, vocês que entram”. Londres, noite de 8 de setembro. As portas vai-e-vem do 02 Islington Academy foram abertas para me dar passagem. Uma massa de ar quente grudou em mim. Porão lotado, almas suadas se acotovelando na disputa por uma visão mínima do palco. Um urro abismal quase arrebentou meus tímpanos: o vocalista da banda de abertura cantava. Não entendi uma só palavra gritada pelo moço exibindo corte de cabelo moicano e impressionantemente idêntico à cantora Cássia Eller. Lembrei então da advertência dantesca. O que fazer? Voltar? O porteiro olhou pra mim, esperando. Já que eu estava no inferno, melhor abraçar logo o capeta, vai. Tá aqui meu ingresso, moço.
Você é mulher no meio de uma platéia punk 98% masculina. Os 2% restantes são compostos por damas de aparência tão frágil quanto a de gladiadoras. Boa notícia: um banheiro sem filas, vazio e limpo do início ao fim do show, só pra você. Péssima notícia: comece a se preocupar com sua integridade física, porque, com muita sorte, você será apenas estuprada. O mezanino foi a salvação: lá em cima, isolados do gentio, somente punks de boutique que pelo menos pareciam saber ler e escrever. E que tinham tomado no mínimo um banho nas últimas duas semanas. Arranjei um lugar bom pra ver o show.
E o show era Jello Biafra com sua recente banda, The Guantanamo School of Medicine. Jello Biafra é Eric Reed Boucher, 51 anos, ex-vocalista da banda punk californiana Dead Kennedys, que esteve em atividade durante a década de 80. Então o clima era de saudosismo: olhando para a concentração de homens lá embaixo, o número de cabeças calvas e grisalhas se destacava entre a minoria de cabelo verde, espetado por claras de ovos e sabão.
Uma hora esperando, a banda entrou. Só tios. Jello veio depois, pulando, vestindo jaleco branco sobre a camiseta preta e calça jeans. Todo sujo de sangue falso, concentrado nas luvas cirúrgicas que cobriam as mãos. A velharada entrou em êxtase, formou-se a tradicional roda de pogo (a dança empurra-empurra punk, dessa vez na hilária versão geriátrica). Santo mezanino.
Entre uma música e outra, Jello discursava contra as atrocidades do governo Bush. No meio do show, tirou o avental e as luvas, mostrando a camiseta preta com mensagem: I support Iraq veterans against the war. Dançando, Jello parecia um mímico, contorcendo o rosto com caretas, gesticulando, simulando estar sendo torturado.
O set list do show? Sei lá! Fui ao show só para ver o Jello. O álbum de estreia do Guantanamo School vai ser lançado em outubro. Do Dead Kennedys, conheço apenas “California Über Alles”. Foi durante essa música que Jello voou sobre fãs. Foi bizarro: um tiozinho meio careca, dono de uma senhora pança, dando um mosh pra cima da roda de pogo formada por outros tios pelancudos e barrigudos. O roadie não sabia se ria ou se salvava o patrão das mãos enrugadas da galera. Fez as duas coisas.
Intervalo para o bis. No corredor lateral ao palco, uma mulher de cento e trinta anos de idade, vestindo minissaia e blusinha regata, estava desmaiada e tentava ser reanimada pelo staff. Ela bateu a cabeça enquanto balançava os dreadlocks compridos, que batiam na altura da cintura. Mas foi só Jello retornar ao palco para a Medusa punk ressuscitar e voltar a chacoalhar os minhocões. Temperatura explodindo os termômetros, Jello se livrou da camiseta, orgulhoso em revelar a gravidez de seis meses. Incansável, cantou mais três ou quatro músicas (que me pareceram todas iguais...).
Jello e a banda voltaram para o segundo bis, a platéia delirou. Mas eu já estava satisfeita. E faminta. Dei uma passadinha no meu banheiro particular, ainda perfumado de desinfetante e abastecido de papel. Desviei da fila que se estendia diante da porta do banheiro dos desafortunados do sexo oposto, pisei em vários pés até alcançar a porta de saída. E fui embora do inferno, catando as esperanças deixadas na chapelaria. Foi divertido. A banda é competente, acho que o disco novo vai ser aprovado pelos fãs do Dead Kennedys. E Jello é figuraça. Cinquentão plugado na tomada, punk sempre inconformado, esperançoso para que sua música seja entendida como uma denúncia sarcástica contra a hipocrisia da sociedade e política americanas. Bacana. Tiozinho, mas ainda querendo mudar o mundo. Naquela noite, voltei ao mundo dos vivos sorrindo. Contente por ter descoberto que sim, de boas intenções, o inferno está cheio.

19 comments:

Daniel said...

ahahahhaha....ora Ana, que isso? Tem que entrar no clima, pô!?

Já voltou? O que mais você viu de bom por aqueles lados?

Galaxy Of Emptiness said...

Que mais de bacana? Adivinha! Vi um certo cara de voz rouca, pra variar...hehe.
Mas isso merece um texto à parte, depois eu conto direito!
Bjs!

Cris Ambrosio said...

Uaaaaau! Deve ter sido interessante ficar no meio desse... pessoalzinho. Não gosto tanto assim dos Kennedys mas legal saber que o espírito ainda está vivo. Mesmo que seja em bate-cabeças geriátricos. xD

Esperando o post do Lanegan!!!

Annix said...

não sei, com esse texto fiquei com a impressão de que você espera que as pessoas com mais de 50 anos automaticamente se transformem em pais suburbanos de óculos. Bicho, o Lux tinha 62 anos quando morreu, e garanto que parte do público é contemporâneo dele. Qual a surpresa? As pessoas envelhecem, mas não precisam mudar. E todo esse povo viveu uma época que a gente só pode vivenciar vicariously, e com inveja.

e Cris, francamente não entendi o "pessoalzinho"...

Galaxy Of Emptiness said...

Não é crítica, não, é só tiração de sarro. Tô dando uma bela exagerada. No show do Hold Steady, que foi no mesmo lugar, tinha gente até mais velha na platéia...e os caras da banda são mais novos que o Jello. Eu me diverti pra burro e não reprovo em nada quem tem 80 anos de idade e vai a um show (ou faz um show). Tá certíssimo. Se aos 80 anos o Lanegan, de bengala e desdentado, ainda fizer show, eu e meu reumatismo estarão na platéia, com certeza!
Bjs!

Cris Ambrosio said...

Não tem nada de errado em depois de muito tempo as pessoas continuarem gostando das mesmas coisas e tal; muito pelo contrário. Acho que quem vira pai suburbano de óculos é normalmente quem estava seguindo a modinha da época.

"pessoalzinho" é o jeito que eu falo, não estava tentando falar nada pejorativo xD

Annix said...

Eu entendi que a intenção era tirar sarro :) Mas é que há uma certa distância entre o sarcasmo elegante e o endosso de alguns preconceitos como forma de humor...dizer que porque a plateia punk era 98% masculina, vc ia ter sorte se fosse apenas estuprada foi, hã, meio "burguês" demais. E sexista, né? E, putz, "gentio"? Como vc vê, o negócio da idade foi só um dos aspectos que achei estranhíssimos, coisas que eu já ouvi da boca de muita gente com quem eu nunca te associaria.
Mas enfim, é só um texto, e um exercício de estilo, talvez. Digo que eu prefiro seu estilo elegante normal.
:-***

Daniel said...

Esse Hold Steady é bem legal, bem mesmo! Apesar do vocalista ter uma dicção pra lá de estranha e voz esquisita.

Conte mais também sobre os OUTROS shows, né!? Lanegan eu já vi, ora pois! ahahaahha

Galaxy Of Emptiness said...

Calma aí, hehe. A parte do estupro foi justamente aquela em que mais carreguei nas tintas. Lógico que nunca pensei que seria mesmo estuprada. Foi um modo exagerado de dizer que eu não estava a fim de ficar no meio de uma multidão de punks, mas não por achar realmente que eu fosse sofrer um grande mal. Tirando os copos de cerveja tacados no Jello e os safanões dados, sei lá porquê, numa coitada (que não fui eu), não houve maiores incidentes. E "multidão", "grande concentração de pessoas" são justamente os significados de "gentio"...fui até conferir no Aurélio porque fiquei encafifada!
Se o texto for levado a sério, sim, é pedante, metido, antipático, etc.
Mas, sério, quando escrevi, nunca pensei que ele pudesse ser interpretado de uma maneira séria. Não, pelo menos, por quem me conhece.
Mas tudo bem, Anninha, gosto quando vc. me dá pitos!! Sua opinião é muito importante pra mim, sempre!! Bjs!!

Calma vc. também, Daniel! Eu vou contar dos shows! Aos poucos eu conto, porque esse blog ficou parado um tempão e agora que eu tenho assunto tenho que caprichar, né! Bjs!!
(ow, vamos combinar de sair, eu, você e a Cris, né!)

Daniel said...

Realmente, mas é bom não chamarmos Annix (a parte a questão geográfica da história) hahahaha...claro, não levem isso a sério!

Mesmo assim eu insisto que você deveria ter entrado no clima e acho que muito do que se parece ao vermos um punk não se confirma. É mais aparência, estilo. Já vi vários que são pra lá de dóceis. As pessoas, em uma situação de coletividade, tendem a agir de forma estúpida. É uma questão psicológica.

PS: prometo estar presente na próxima do Garagem, nesta última não deu.

Galaxy Of Emptiness said...

Ahahaha, mas o que é entrar no clima? Eu estava achando tudo muito engraçado, eu não tava de mau humor, resmungando ou achando ridículo (no mau sentido)! Só não ia me enfiar no meio do pogo, né! Isso que vc. falou é certíssimo: o ajuntamento é o problema, não as pessoas individualmente. Seja pra tentar ver um show, chegar perto do ídolo, entrar no metrô em horário de pico...quando um bando de gente junta quer a mesma coisa, não importa se é punk ou uma horda de mulheres, a possibilidade de dar merda existe. Po, a platéia mais violenta que já vi foi no show do A-HA quando eu tinha quinze anos. Era tanta histeria e empurrão que uma amiga minha caiu no chão, parte da grade caiu sobre ela e ela ainda foi pisoteada por uma manada de adolescentes. Saiu chorando e machucada.

Eu também não fui à festa do Garagem, parece que foi legal, como sempre.

Annix said...

Peraí, acho que vc ainda não entendeu, Anita. Não disse que levei o texto a sério (não falei que entendi que era um exercício de estilo?), e óbvio que vc não tinha medo de ser estuprada realmente, po. Mas é a linguagem. Eu realmente fico muito passada com isso que vc chama de "carregar nas tintas". É sexista, é preconceituoso, enfatiza o estereótipo e...te faz soar mais como uma patricinha alienada do que qualquer outra coisa. E, como eu disse, QUE EU SEI QUE VOCÊ NÃO É. Por isso não entendo o porquê de vc querer SOAR como uma, sendo que não pensa assim. Tem coisas que a gente não deve dizer ou fazer levianamente, e propagar preconceitos é uma delas.

E, putz, vai ver o Jello Biafra e não tava a fim de ficar no meio de uma multidão de punks? Aliás, vai a show e não quer ficar no meio da multidão? Algo errado na equação.

(e sim, gentio significa turba, multidão...e também selvagens, incivilizados)
Enfim, chega. Desculpa a bronca, mas eu acho que tudo que a gente diz ou publica carrega uma responsabilidade junto. Bjs.

Joaollourenco said...

Só sei que sou um feliz proprietário do disco em vinil BRANCO, Fresh Fruit For Rotting Vegetables dos Kennedys.
Lembro de uma vez que fui no Garagem Hermética ver o show de um amigo, lá era meio o templo punk/alternativo de PoA, e uma gurizada me tirou para porteiro.

Eu, já não gosto de show com gurizada, pois a maioria vai em qualquer “balada”, quando alguém com um pouco mais de idade tem saco de sair de casa é sinal que esta afim mesmo de ir e curtir.

Galaxy Of Emptiness said...

:)

Posso contar a história do passado (e do possível futuro) desse texto?

Meses atrás, o André Forastieri comentou comigo que, quando ele vai a shows em SP, tem molecadinha que olha pra ele com cara de "o que um tio como vc. tá fazendo aqui?". Mas que ele não ligava e ia a shows assim mesmo.
Eu comprei ingresso pro Jello porque o André me disse que era muito legal. Semana passada, em Londres, eu escrevi pra ele contando do show, falando que havia sido divertido. Os comentários sobre o "estupro" e "pogo geriátrico" nasceram naquele email que mandei pro André. Ele respondeu. Disse que tinha vontade de publicar meu email. Por que? Porque ele tinha achado engraçado. Justo ele, que integra uma das categorias que supostamente ofendi (a dos homens de cabelos brancos que vai a shows). Forasta não é preconceituoso, não é sexista, tenho certeza de que ele não acha que punks são bárbaros. Ele entendeu que eu escrevi uma caricatura zoando, sim, com alguns estereótipos (inclusive o da menina fresca). Eu não escrevi o texto querendo soar como uma patricinha alienada. Eu quis soar engraçada. Aliás, sério, depois que o André riu, ao escrever meu texto eu nunca pensei que alguém poderia entender como preconceito e não como tiração de sarro. Pensando agora, acho que talvez haja três interpretações:
1- "ela é preconceituosa"
2- "coitada, sozinha no meio dos punks"
3- "o texto é engraçado, ela tá zoando estereótipos"
Eu falei pro André não publicar o email porque estava escrito nas coxas, com pontuação errada...enfim, escrevi correndo. Mas disse que escreveria um texto corrido em SP e mandaria pra ele, caso ele quisesse mesmo publicar no Bis. Esse texto do blog é a cópia do texto que mandei pra ele.
E é isso. Eu não quis soar alienada. Eu soei alienada pra você, Anna, na sua interpretação (a qual, já disse, eu respeito do fundo do coração). Para o Forastieri, para o Daniel (que riu), eu soei como queria soar: engraçada e só. É por isso que não tenho um pingo de vergonha do que escrevi: meu texto é passível da interpretação que eu desejei pra ele (aliás, da única interpretação que eu achava que ele pudesse ter).
Não sei se o Forasta vai mesmo publicar. Tomara que publique. Queria ver a reação das pessoas, saber qual das 3 interpretações seria a maioria.

Oi, João!
Seguinte: lá em Londres o pessoal mais velho não sai de casa pra ver show. Sai do trabalho. Eu notei lá que show é tipo happy hour. Como o transporte público é ótimo, o pessoal tem tempo de sair do trabalho e chegar para a banda principal (que costuma se apresentar lá pelas nove da noite). Então, tem muita gente de terno em show em Londres, reunida em rodinhas de amigos do escritório, bebendo. Como os shows terminam cedo e o transporte é bom, o pessoal já tá em casa antes da meia-noite. Então, pessoal mais velho em show é algo normal. Ninguém tem que fazer um grande esforço pra ir ou voltar.

Annix said...

Ok, eu não ia comentar mais nada, mas vamos lá.

O ponto é : você quis soar engraçada. Eu, na MINHA opinião, achei que vc não conseguiu. Vc tentou ser snarky, que é um tipo de atitude que, bem feito, pode ser cool. Mas que, tenho de dizer, poucas pessoas conseguem fazer direito. Em geral, soa apenas maldoso e causador.

(eu sou da escola que acha que a gente só deve falar mal do que realmente não gosta - o resto é só provocação vazia. Miss goody-two-shoes? Tá, mas pelo menos as pessoas sabem que as minhas opiniões são sinceras)

Po, que bom que o Forastieri achou engraçado. Mas pra mim isso não faz diferença alguma - respeito o trabalho do cara, mas francamente, ele não é referência de nada pra mim - especialmente no humor, he.

E olha, sinceramente tb, eu tou meio cansada de ouvir gente falar que punks são isso, aquilo e bla bla bla. Cansa mesmo. Assim como cansa ouvir que mulher não sabe dirigir, que brasileiro é tudo malandro, etc. Generalizar pra bancar a piada é algo pra que eu já perdi a paciência há muito tempo. Mas de forma alguma acho que vc tenha que ter vergonha do seu texto. É bem escrito, como sempre. Só não concordo com o viés.

E pra finalizar, por coincidência um amigo mandou um texto exatamente sobre a snark culture. É muito bom, e o título diz tudo : it's not big, it's not clever.
http://www.guardian.co.uk/books/2009/aug/29/digital-media-celebrity-snark#history-byline

Galaxy Of Emptiness said...

Tá, é uma diferença de enfoque.

O que você entendeu por maldade e preconceito eu (e outros, talvez) entendi como paródia e caricatura, ainda que eu não tenha escrito direito o meu texto. Eu não fui maldosa com os punks para garantir a piada. Eu tirei sarro deles para garantir a piada. Da mesma forma que, em um dos primeiros posts desse blog, o "Se Meu Focus Falasse", eu usei uma ilustração machista para contar como dirijo mal. Não acho que eu tenha ofendido as mulheres e acredito que saber rir de si mesmo e de certos estereótipos é prova de que essa vida dura pode ser encarada com alguma leveza.
No dia em que um cidadão for crucificado porque, fechado por uma loira no trânsito, gritou "vai lavar roupa, Dona Maria", é porque o mundo ficou mesmo muito chato.

Annix said...

dizer que alguém é um possível estuprador é tirar sarro? eu, hein...

Luis Gustavo Cardoso said...

Poxa vida, eu poderia jurar ter ouvido alguém sentenciar esse dito do poeta italiano, esta semana mesmo. Ah, mas só em sonho, esse foi um daqueles momentos que o Borges reluta em chamar de deja vu, mas que assume como um engano, uma rasteira que a memória passa na gente. A escrita tá boa demais, o que garante a viagem espiritual! resolvi me arriscar a manter contato! um beijo.

Galaxy Of Emptiness said...

Obrigada, Luis. Bjs.