Wednesday, April 16, 2008

Paraíso



"Seus olhos, donde a chama eternal é partida,
Como se olhassem longe estão no firmamento;
E não os vê jamais, por sobre o pavimento,
Inclinar vagamente a fronte sucumbida.
Atravessam assim a infinda escuridade,
Esta irmã do silêncio imutável, cidade!
Enquanto em torno a nós é um lamento o teu canto."
("As Flores do Mal", "Os Cegos", Charles Baudelaire)

"Not feelin´any pain
But I know that it´s real
Never see the color of the day
In the darkness I kneel."
("Praying Ground", Mark Lanegan)


Álcool. E as drogas eleitas pelo século retrasado: ópio e haxixe. Charles Baudelaire, o maldito poeta francês, esteve vivo no paraíso. Preferiu ir embora. Antes de morrer em Paris, no ano de 1867, relatou suas experiências. Publicada pela primeira vez em 1860, a obra "Les Paradis Artificiels" é um conjunto de ensaios sobre os efeitos dos entorpecentes dos quais fez uso. Os "paraísos artificiais". Prazer com prazo de validade que os homens ansiavam para escapar da mediocridade existencial à qual estavam condenados. Uma fonte mórbida de felicidade que cessava quando o potencial inebriante dos tóxicos chegava ao fim, trazendo depressão e calafrios. Baudelaire quis entender e explicar as motivações mais profundas que conduzem alguém ao falso Nirvana das drogas.


"A heroína me salvou do alcoolismo", explicou ironicamente Mark Lanegan, em uma entrevista de 2004, sua motivação mais profunda para regulares visitas ao Éden. Lanegan, nascido em 1964 em uma pequena cidade de Washington, EUA, filho de uma família desestruturada, passou a adolescência furtando comerciantes locais e entornando latas e garrafas de álcool. Aos vinte anos, foi alertado por um médico de que não chegaria aos trinta se não largasse a bebida. Largou. Com ajuda da heroína. Em 1986, Mark Lanegan e amigos montaram o "Screaming Trees", banda depois associada ao movimento grunge, junto com Pearl Jam, Mudhoney, Soundgarden. E Nirvana. Inicialmente, Lanegan tocaria bateria. Péssimo no manejo das baquetas, assumiu os vocais. Do "Screaming Trees" e de sua própria carreira solo, paralela à banda. A voz de Mark Lanegan - absurdamente rouca, soturna, marcante e única - era perfeita para as composições bem diferentes do rock de garagem do "Screaming Trees": canções com levada blues e folk. Tristes e lindas.

1996, fim do "Screaming Trees". Desentendimentos e brigas: Lanegan reclamava que trabalhava por todos os outros membros. Dependência química. Mark Lanegan sabia que amigos estavam morrendo por escolher o mesmo caminho. Como Kurt Cobain, do Nirvana. Em 1997, acontece a prisão por posse de drogas. O paraíso havia se transformado no inferno, era hora de partir. E ele partiu. Os cigarros salvaram Lanegan da heroína. Hoje seu único - e pesado - vício. Como Baudelaire, Mark Lanegan escreveu seu testemunho a respeito do vício em entorpecentes. Mas escreveu na forma de músicas que cantou, e canta, com as mesmas cordas vocais que a heroína e o fumo ajudaram a arruinar e - espantosamente - a fazer a voz tão bela. Em "Methamphetamine Blues", faixa do disco "Here Comes That Weird Chill", de 2003, Mark Lanegan confessa: "I don't want to leave this heaven so soon". Memórias de um lugar ilusório e artificial, que felizmente ele soube deixar para trás.
-------------------------------------------------------------------------------------
Bruxelas, nove e quinze da noite, 11 de abril de 2008. Eu aos pés de Mark Lanegan. No sentido literal da expressão "aos pés". E figurado também. Primeira fila do show do "Gutter Twins", confortavelmente (belgas, civilizados, não empurram, não encostam). "Gutter Twins" é a dupla Mark Lanegan e Greg Dulli, amigos das antigas. Greg Dulli, ex-líder da finada "Afghan Whigs", atualmente vocalista e guitarrista do "Twilight Singers". É o encontro do rock-soul, de Dulli, com o rock-blues, de Lanegan. De dois brothers que se ligaram de que o paraíso um dia prometido....era a sarjeta.
A menos de dois metros de distância, na minha frente, Mark Lanegan não enxerga. Depois de entrar no palco, vai até o microfone, que segura com uma das mãos. A outra, no suporte. Ergue o queixo, fecha os olhos e canta no escuro. O tempo todo. Parado, quase não movimenta o corpo. A voz, áspera ao extremo, toma conta do Ancienne Belgique e rivaliza com a guitarra de Greg Dulli. Imerso em um paraíso particular, Lanegan canta enquanto permace alheio à realidade. Não sorri, não cumprimenta o público, não acompanha o playlist colado no chão, ao seu lado (mas que eu getilmente arranquei das mãos do roadie, quando o show acabou). Quando um fã invade o palco, passa um dos braços em volta de seus ombros e cochicha no seu ouvido...ele continua com os olhos fechados, mãos no microfone, cantando imóvel. Sozinho no bis (Greg Dulli abandonou o palco e foi levado ao hospital, desidratado e hipotérmico), tinha conquistado Bruxelas, cidade onde, anos e anos atrás, Baudelaire afundou no vício. Mark Lanegan não interage com a platéia, não se movimenta no palco, não quebra (e não toca) instrumentos musicais. Não lança novo trabalho solo desde 2004. Não tem banda fixa, apenas contribui com amigos (atualmente além de Dulli, Isobel Campbell, do "Belle and Sebastian", "Soulsavers"), permanece calado em entrevistas, não mantém site oficial (conta cancelada na web...por falta de pagamento!). Mark Lanegan, hoje limpo, desafia todos os padrões de rebeldia do rock. De olhos fechados, na escuridão. Cool.
Bruxelas, dez e meia da noite, 11 de abril de 2008. Eu, cotovelo apoiado no palco, cabeça sustentada pela palma na mão. Aos pés de Mark Lanegan quando a última canção chega ao fim.
Lamento.
Eu não queria deixar o paraíso tão cedo.

14 comments:

Cris Ambrosio said...

Ah! Que saudades dos seus textos!

Legal o Mark Lanegan. Po, quando eu vi a foto pensei que você tivesse entrado no backstage!

Acho bobo quando o músico fica fazendo palhaçadas no palco; tchauzinhos, beijinhos, rosas... (roberto carlos outro dia. Argh!) A indiferença é mais honesta, ainda mais com o tipo de música dele (do Mark Lanegan). Não preciso nem dizer que ele é da escola Dylan de desinteresse, né? xD

bjs!

Galaxy Of Emptiness said...

Saudades de você, Cris! Vou te ligar esses dias!

Pois é, o Lanegan é fechadão. Mas não passa uma impressão de antipatia, não. A gente vê que ele gosta de cantar, de dar uma forcinha para os amigos (nessas contribuições, não adianta, a estrela é ele. As câmeras fotográficas iam na direção dele, muito mais do que na do Greg Dulli). Isso sem falar nos incríveis atributos estéticos do moço, que bem valeriam outro texto, rs!!
bjs!

Annix said...

Lindo texto!
Caceta, o Dulli foi pro hospital? Rock and roll!

Galaxy Of Emptiness said...

Obrigada!

Meu, eu nem me liguei de que ele estava mal! Aparentemente estava normal, tocando e cantando bem. Aí no bis volta o Lanegan sozinho e grunhe (ele não fala, grunhe) que o outro ia voltar já, hahaha! O Lanegan cantou sozinho as próprias músicas e...fim! Aí eu fiquei achando que eu que não tinha entendido o que ele havia dito...dias depois, a explicação no myspace...hehe.
Ah, o moço já está bem, nada grave!

Anonymous said...

Belíssimo texto, Ana.

O Lanegan é uma figura bem interessante, é a personificação do anti-herói. Sempre me interessei por esses tipos de gente auto-destrutivas, que fazem de tudo para que as coisas saiam errado.

Acho que foi amúsica que salvou ele e vem salvando todo esse tempo. O cigarro é aquele pequeno detalhe, que mantém ele em pé lá no palco.

Galaxy Of Emptiness said...

Obrigada, Daniel!

Verdade. O sujeito foi alcoólatra, viciado em heroína, preso, brigou com a banda e tomou um pé da mulher, que disse que ele tinha várias personalidades e nenhuma prestava. E depois apareceu pelada em um vídeo do QOSA, ou seja, do amigo dele, ahaha! Só cantando muito e fumando muito para continuar vivo, mesmo. E fazendo turnê. Em junho ele sai pelo mundo com a Isobel Campbell. Estão lançando o novo disco, eba!

Galaxy Of Emptiness said...

Ah, a quem interessar possa: na minha página do myspace dá para ouvir Methamphetamine Blues - que pra mim é uma obra de arte do rock - e dá pra ver o vídeo de Wedding Dress, canção que o Lanegan canta junto com a ex-mulher, que é muito bonita aliás (o clima é muito triste, mas lindo: a letra da canção é um pedido de desculpas e um pedido para não ser abandonado pela garota...e ela do lado!)
http://www.myspace.com/galaxyofemptiness

Galaxy Of Emptiness said...

Falei besteira. A moça do vídeo é uma tal de Shelley Brien, não a ex-mulher, que é bem parecida. Bem que eu estava estranhando tamanha civilidade...

Fernando said...

Bacana o relato do show. Ha algumas semanas que venho escutado o Saturnalia, e acho que ao vivo ele deve ter mais força ainda. Nunca fui muito fa da voz do Dulli, mas ele ta contido ate nesse disco. E o Lanegan como sempre é convincente, nao tem erro. Tudo que ele faz ou participa ele deixa sua marca sólida.

Eduardo Pinheiro said...

Ana,

Achei por acaso seu blog na internet, querendo saber mais sobre a tal Shelley Brien. Encontrei muito mais, como um relato incrível do show do Lanegan em Bruxelas e algo que, na minha ignorância ou falta de atenção, não tinha me ligado - a relação da letra de Methamphetamine Blues e de Paraísos Artificiais. Não sou muito assíduo de blogs, mas este tem tudo que gosto. Letra, música e imagem. Vou estar sempre por aqui. Valeu!

Eduardo Pinheiro - São Paulo

Galaxy Of Emptiness said...

Obrigada!! Mas sou meio lenta e preguiçosa pra atualizar o blog, viu, hehe...
Bjs.

Eduardo Pinheiro said...

Sem problema, tenho um pouco de preguiça de internet. Aliás, muita...rsrs. Gostei também do texto sobre a revista do cara esquisito de
óculos.

Bjs.

Edu

Galaxy Of Emptiness said...

Legal, valeu pela atenção e compreensão!
Ah...achou alguma coisa na net da Shelley Brien? Procurei e não tem quase nada...
Bjs.

Eduardo Pinheiro said...

Oi moça,

Não achei muita coisa sobre a Shelley Brien não, só uma foto. Aliás, bela foto...rs. E sobre o Lanegan, a voz do cara ao vivo e frente a frente é tão poderosa quanto em estúdio mesmo? Fala mais dessa experiência única...rs. Bjs!