Sunday, May 25, 2008

Vengeance is Mine, Inc.




Em Londres, a família de uma parteira é ameaçada de morte por membros da máfia russa. Dentro de uma sauna, integrantes de uma gangue tchetchena tentam matar, a facadas, um capanga russo. Foram induzidos a acreditar que ele é herdeiro do homem que comanda o crime organizado russo na capital inglesa. O rival russo tem a pele tatuada como prova de lealdade a seus chefes. E mantém guardado um segredo.

Na Tchetchênia em guerra com a Rússia, um presidente separatista é assassinado por dois mísseis teleguiados atraídos pelo sinal de seu telefone celular. Ele conversava com um deputado russo e discutia a iniciativa de paz.
Também em Londres, um ex-agente secreto russo bebe chá em um hotel. Sem saber, é envenenado por elemento radioativo com capacidade para destruição semelhante à de uma bomba atômica. A vítima, exilada política e então casada com uma linda dançarina, contamina a cidade até ser internada em hospital e morrer. Mas deixa uma carta revelando o nome do mandante de seu próprio homicídio. O presidente da Rússia.

Duas tramas. Mirabolantes. Encenadas por cidadãos russos que levaram o dever de fidelidade às últimas conseqüências. Repletas de ameaças veladas, conspirações, disputas pelo poder. A vingança materializada na lâmina que abre uma garganta. Ou no veneno que devasta as células de um corpo. Duas tramas que percorrem o mesmo tema: crime organizado russo. Mas que diferem em suas origens. A primeira, ficção, foi registrada por David Cronenberg: "Eastern Promises" ("Senhores do Crime"), filme que tem como personagem central um mercenário - interpretado de forma magistral por Viggo Mortensen (foto à direita) - disposto a matar e a marcar a própria pele para provar sua lealdade à máfia russa em Londres. A segunda foi registrada pelos jornais nos últimos anos (incluindo a sensacional reportagem transmitida pela TV Globo http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM687208-7823-LIVRO+ACUSA+O+PRESIDENTE+DA+RUSSIA+DE+ASSASSINATO,00.html ): a vida real do ex-espião russo Alexander Litvinenko, que se dispôs a morrer, e a colocar parentes e amigos sob risco, para provar ao mundo que a alta cúpula do governo russo era responsável por atos de terrorismo.
Alexander Litvinenko, apelidado Sacha, ingressou no serviço secreto antes do colapso da União Soviética em 1991. Era a KGB, central da inteligência soviética. Sacha organizava arquivos secretos sobre marginais, estudava seus assuntos pessoais, redes, contatos com empresários e políticos. Trabalhava nos bastidores, desvendando planos de corrupção através de escutas telefônicas clandestinas, recrutando e comandando agentes infiltrados em gangues.

Fim da União Soviética. Boris Ieltsin assume o comando da Federação Russa. Não mais KGB; a inteligência russa é agora concentrada no FSB. Litvinenko continua a servir sua pátria, que então enfrenta uma nova era: a da liberdade. Liberdade de circulação, liberdade de imprensa, liberdade de mercado. Com as privatizações, empresários enriquecem. Um deles é o poderoso milionário Boris Berezovski, amigo de Sacha. Berezovski gozava de muita influência no governo Ieltsin. Graças a ele, um antigo oficial da KGB é nomeado chefe do FSB: um homem de origem humilde, filho de operários, que viveu infância pobre e adolescência rebelde, marcada por brigas de rua, ameaça escolar, más companhias. Um professor conseguiu afastá-lo da delinqüência, ensinando-lhe artes marciais. O judô deu disciplina, concentração e habilidade tática ao rapaz. Segundo o treinador, o jovem lutava como um leopardo decidido a vencer a qualquer custo. Continuou a praticar o esporte quando começou a aprender o ofício de espião. Vladímir Vladímirovitch Putin era seu nome (foto à esquerda).
Trabalhando no FSB, Sacha descobre um esquema de corrupção e um plano para matar Berezovski. Vai até Putin e delata a conspiração. É tratado com extrema frieza. Putin o considera desleal aos companheiros de serviço. Após o encontro, Sacha comenta com Marina, sua esposa: "Conheço um homem pelo aperto de mão. O dele era frio e pegajoso. Eu podia ver em seus olhos que ele me odiava". Litvinenko recorre à televisão. Ao lado de quatro agentes mascarados, escancara publicamente as ilegalidades cometidas por gente do FSB. Cai em desgraça com Putin, é preso.
Terminando o segundo mandato presidencial, Boris Ieltsin necessita de um sucessor. O homem escolhido para concorrer às eleições é Vladimir Putin. Em 1999, áreas residenciais de Moscou são alvos de bombas. Os tchetchenos separatistas são apontados pelo governo como sendo os responsáveis. Investigações que apuram um possível envolvimento do próprio FSB são abafadas. E Putin torna-se presidente da Rússia.
Sacha é solto, mas sabe que tem a inimizade do homem mais poderoso do país. Litvinenko, esposa e filho fogem para a Turquia. Ajudado por um cientista russo trabalhando para o empresariado americano, tenta negociar asilo político junto à embaixada dos EUA em Ancara. É descoberto pelos russos, que enviam espião para vigiar o ex-agente no hotel em que se hospedou (o capanga chama a atenção por se esconder atrás de um jornal aberto - clichê cinematográfico que Sacha logo identifica). Os russos tentam impedir que Sacha saia da Turquia, mas fracassam. A familia fugitiva consegue embarcar em avião e aterrissar na Inglaterra, onde é acolhida e sente-se segura. Ilusão.
Em Londres, Litvinenko descobre, da forma mais dolorosa e inimaginável, que continuava sob os olhares do Kremlin. Em novembro de 2006, Sacha se encontra com Andrei Lugovoi, ex-chefe de segurança de Boris Berezovski. Não desconfia que a missão de Lugovoi é assassiná-lo. Não nota quando, conversando com seu compatriota no bar de um hotel, ingere veneno que havia sido despejado em um bule de chá. Depois do encontro, o dissidente russo começa a sentir-se mal. Vomitando, é internado. Os médicos não conseguem identificar a causa. Inicialmente, suspeitam da ação de bactérias. Quando Litvinenko começa a perder o cabelo, é levantada a hipótese de envenenamento. Inicia-se uma corrida contra o relógio: identificar a substância tóxica e medicar Sacha a tempo de salvá-lo. Mas Litvinenko sabe que já está morto: mesmo debilitado e tomado por intensa dor causada pelo veneno que dizimava seus tecidos, atende a imprensa e a Scotland Yard, fornecendo à polícia todas as valiosas informações que eventualmente pudessem incriminar o executor de seu homicídio. E estabelecer a ligação com o homem que teria dado a ordem de extermínio. Segundo Sacha, Putin.
Polônio-210 foi o elemento radioativo que em questão de dias matou Alexander Litvinenko. Sua produção ocorre em laboratórios russos controlados pelo governo. É caro e inacessível para assassinos comuns. E nunca havia sido usado para exterminar um ser humano. Embora inofensivo para quem o manipula, uma vez engolido ou inalado não dá à vítima a mínima chance de sobrevivência. Um grama é suficiente para matar meio milhão de pessoas. Médicos afirmaram que Litvinenko recebeu uma dose equivalente a estar no epicentro da catástrofe de Tchernobil...por duas vezes. Os assassinos de Sacha apenas não contavam que o organismo do ex-agente fosse resistir tanto, a ponto de permitir que médicos e peritos estudassem o caso e identificassem o veneno. Em entrevista, o pai do ex-agente disse que o filho havia sido morto por uma "minúscula bomba nuclear". Atualmente, a viúva Marina Litvinenko luta para que todos os implicados na morte de seu marido sejam apontados e punidos. Putin nega veementemente o envolvimento no crime.

"Vengeance is Mine, Inc." é nome de um dos contos escritos pelo britânico Roald Dahl (1916-1990). Comparsas abrem uma empresa que oferece a seus clientes serviços de vingança. Trama sinistra publicada na coletânea "More Tales of The Unexpected".
A trama sinistra que levou à morte de Litvinenko está no livro "Morte de um Dissidente", de Alex Goldfarb e Marina Litvinenko. História real e surpreendente, muito além da força criativa de roteiristas cinematográficos e escritores de ficção.

4 comments:

Anonymous said...

Impressionante, não consigo imaginar alguém ingerindo polônio....e conseguir sobreviver por um tempo!!! Eu sequer tolero uma simples dipirona.

Por falar em Leste Europeu essa história lembra muito aquele caso de tempos atrás do candidato à presidência da Ucrânia, o Viktor Yushchenko, que do dia para noite apareceu com um princípio de intoxicação que fez com que seu rosto ficasse todo deformado. Assemelhou-se a bolor.

A Máfia Russa gera histórias extremamente interessantes de espionagens, apesar do alto grau de selvageria. E é mais do que claro que o Putin é mentor de tudo isso.

Galaxy Of Emptiness said...

Putin é gangster.

Essa foto dele já diz muita coisa. Eu até cheguei a pensar que era montagem...a cara dele no corpo de um fortão. Mas fui pesquisar e é ele mesmo.
Bandido, mas amado pelos russos.

Cris Ambrosio said...

E o mais legal de tudo é que por uma jogada política lastimável, ele continua no poder, até sabe-se lá quando. Estava estudando isso essa semana! Friozinho na barriga.

Os russos gostam dele porque se sentem seguros e porque pensam que as coisas poderiam estar muito piores, imagino. Do mesmo jeito que todos os monstrinhos que tiveram apoio ao longo da História acabaram linchados, exilados ou suicidando-se. Sei lá, as coisas mudam. Espero.

Anonymous said...

É uma condição normal essa. A Rússia estava em uma pindaíba de dar dó. Sob moratória, sociedade capengando. Aí aparece o salvador da pátria, o tipo de sujeito influente e matreiro, que passa por cima de tudo e todos para estar no poder.

A Rússia está condenada a viver muito tempo sob a régia dessa ambiciosa quadrilha internacional.