"But remember that the city is a funny place/Something like a circus or a sewer/And just remember different people people have peculiar tastes/And the - Glory of love, the glory of love - the glory of love, might see you through" ("Coney Island Baby", Lou Reed).
Existe um lugar no qual a cor é uma só. A cor da sujeira do cobertor que enrola o bêbado sonolento na calçada. A cor da parede esburacada onde, na rua, a menina esconde o dinheiro que deve ao cafetão. A cor do chão em que se encolhe o moleque, torcendo para que ao menos naquela noite o padrasto chegue da rua e espanque apenas a sua mãe. A cor da mancha estampada no rosto do travesti que atrasou a comissão do policial. Quer conhecer? Então que tal dar uma volta pela zona barra-pesada da cidade? Quem convida é Lou Reed, seu anfitrião e guia. Ex-vocalista e guitarrista da banda "Velvet Underground", hoje em carreira solo, que desde os anos 60 escancara o lado monocromático de Nova Yorque. Trovador urbano que abre portas e janelas de espeluncas, cortiços e hotéis baratos para revelar e contar, através de canções, os dramas, a desesperança e inanição de um mundo pintado em preto-e-branco. Mundo onde, em outra época, em outro país, o jovem Van Gogh se atreveu a passear.
Vincent Willen Van Gogh nasceu em 1853, na Holanda. Filho de família modesta, foi educado e se tornou missionário e professor. Trabalhou na Inglaterra e na Bélgica. Gostava de desenhar. Em 1882, estabeleceu-se em Haya, no seu país natal. E foi em Haya que Vincent saiu às ruas na busca de inspiração e modelos para seus trabalhos. Van Gogh escolheu os marginalizados para retratar. E escolheu o material: somente papel, giz escuro e carvão poderiam traduzir em imagens a miséria e o futuro ausente. Em um asilo para indigentes, encontrou o velhinho Adrianus. Adrianus era um dos "orphan men", apelido dado aos ex-combatentes no conflito que separou e tornou independentes Holanda e Bélgica. Um dos homens que o Estado usou e abandonou quando sobreveio a paz. A figura maltrapilha de Adrianus esteve presente em diversos desenhos simples e tristes de Van Gogh, assim como um dia Lou Reed também se lembrou dos mutilados veteranos de outra guerra, a do Vietnã, na linda canção "Xmas in February".
Adrianus foi o começo. Durante toda a sua vida, Vincent Van Gogh elegeu oprimidos como personagens principais de suas obras. Desabrigados, prostitutas, mendigos. Desabrigados, prostitutas e mendigos que, ao lado de traficantes de drogas, travestis, ex-presidiários ou desempregados, Lou Reed, no século seguinte, colocou sob os holofotes de músicas como "Magic and Loss", "Heroine", "New Sensantions", "Walk On The Wild Side", "I'm Waiting For The Man".
No mesmo ano em que rabiscou no papel os traços duros e sofridos de Adrianus, Van Gogh conheceu Clasina Maria Hoornik, a "Sien". Três anos mais velha, sozinha, dois filhos mortos, uma filha pequena. Grávida do homem que a largou. Vagando pela cidade durante o inverno, faminta e prostituída. Condoído, Van Gogh acolheu a pequena família em sua casa, para dividir com "Sien" a sua pobreza. E para torná-la sua modelo, em troca de pão e um teto, muito embora reconhecesse toda a falta de beleza da moça. Os muitos desenhos de Sien são tão rígidos e duros quanto sua feição precocemente envelhecida e judiada por marcas de varíola. Um dos mais tocantes mostra Sien sentada diante de um forno, fumando. Uma mulher sem brilho. Para Vincent, a vida com Sien era boa. Ele tinha alguém. Apaixonou-se. Mas a ilusão durou apenas um ano e meio. Van Gogh, artista sem dinheiro e ainda longe do reconhecimento (que só chegou depois de sua morte), não conseguia prover o lar. Sien voltou para as ruas. Era o fim. O pintor deixou a cidade. Após um casamento falido, Sien afogou-se. Epílogo de um amor fracassado, protagonizado por gente idem. Como em "Baby Face", na voz e poesia de Lou Reed. Ou na original "Romeo and Juliette": gangues rivais de hispânicos e italianos empatando um romance.
Poucos sabem, mas Vincent Van Gogh produziu mais desenhos do que telas cheias de cor (http://www.vggallery.com/index.html). A explosão de cores marcou a fase do pintor vivida em Paris, anos depois de Adrianus e Sien. Anos depois de ter desistido da escuridão para procurar a claridade e pintar sua tela mais célebre, e uma das mais famosas da História da Arte: "Doze Girassóis Amarelos em uma Jarra". Anos depois de ter se aventurado por becos proibidos e visto, como Lou Reed viu, flores sem cor brotando em latas de lixo, lutando para sobreviver em um lado que nem todos conhecem. O lado sombrio e selvagem da vida.
1 comment:
Sempre achei interessante essas formas de expressão que dão um certo valor ao lado podre e negro da vida, tornando-os de certa forma um pouco "poéticos".
Coisas simples e banais, que muitas vezes passam despercebidos pelos nossos olhos indiferentes, as vezes guardam personalidades surpreendentes.
Ambos tinham essa sensibilidade para observar esse lado da vida.
Mesmo assim, sempre achei o Lou Reed um pouco chato, apesar de escrever belas letras.
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