Sunday, November 19, 2006

This is Radio Clash



"How fast we burn/How fast we cry/The more we learn/The more die/I hear the planet crying now" ("Teen Angst", M83).

"Você estará segura na Índia, lá eles não matam vacas".
Há cerca de dez anos, esse foi o recado afetuoso que estudantes da caótica Belgrado, na Sérvia, mandaram para Mira Markovic. Mira, em viagem ao exterior, era a então esposa de Slobodan Milosevic, o homem que esfarelou a Iugoslávia.
Final dos anos 80. O Leste europeu comemorava a queda do Muro de Berlim e a perspectiva de uma nova vida diante da abertura política, econômica e cultural. Em Belgrado, capital da Sérvia e da Iugoslávia, a animação era geral. A Iugoslávia havia sido o país menos fechado da Cortina de Ferro. Reflexo da política de abertura semiliberal adotada pelo Marechal Tito, fundador do país. Enquanto em cidades como Budapeste e Praga a cultura pop só floresceu a partir de 1989, os jovens de Belgrado já usavam calças Levi´s e colecionavam a discografia completa do Sex Pistols. Iugoslavos tinham dinheiro (emprestado do Ocidente, mas tinham) e trânsito permitido para férias em outros países. Assim, o fim do Comunismo sinalizava o progresso de um povo já familiarizado com os ares do Oeste. Belgrado, bom lugar para se viver, gozava de potencial para se tornar metrópole definitivamente cosmopolita, como Paris ou Londres.
Mera ilusão. Slobodan Milosevic, burocrata do antigo regime, era presidente da República da Sérvia e cultivava ambições de governar toda a Iugoslávia. Graças a alianças políticas acertadas, o poder de Milosevic cresceu. O presidente conseguiu o controle estatal da rede de televisão. Manipulando a imprensa, fez apologia do nacionalismo sérvio e convocou a população para a guerra de conquista. Era o começo do fim da liberdade em Belgrado.
Mas, em 1989, não foram somente as mudanças políticas que marcaram a Sérvia. Nascia também a Rádio B92, com a proposta de unir jornalismo informativo e apolítico a rock independente de vanguarda. Veran Matic, o editor-chefe, reuniu equipe de DJs e jornalistas para produzir jornalismo que contasse a verdade sobre um país às portas da desintegração, levando ao ar entrevistas com pessoas até então marginalizadas e menosprezadas pelo sistema: junkies, prostitutas e figuras assíduas do "Akademija" ("Academia"), buraco escuro de Belgrado onde rolava o melhor punk rock importado e se apresentavam bandas alternativas locais. A transmissão jornalística era pontuada pelos últimos lançamentos de Sonic Youth, Nirvana, Primal Scream.
Estourou a guerra. Aos jovens sérvios restaram poucas alternativas: a convocação para o Exército, a deserção (muitos deixaram o país) ou a resistência em uma cidade que, perplexa, via se diluir o sonho da "primavera de Belgrado". Belgrado afundou nas trevas. Desprotegida, caiu nas mãos dos traficantes e contrabandistas, que impuseram até mesmo um novo estilo musical, o horrendo turbo-folk, mix de hip-hop de péssima qualidade com ritmos sérvios. Era a música da ditadura. Os índices inflacionários estouraram; em janeiro de 1994, 313.563.558% ao mês. O dinheiro não valia mais nada. Sérvios, reféns de uma TV que servia aos interesses de Milosevic, não tinham idéia do que acontecia em seus quintais. Coube portanto a Veran Matic e à brava B92 liderar o protesto e alertar o povo acerca dos abusos cometidos pelo político-ditador. Quando o governo aumentou impostos sobre produtos voltados a recém-nascidos, Matic convocou centenas de mães a tomarem seus filhos no colo e acamparem diante da mansão de Milosevic. Bastou uma noite inteira ao som do choro conjunto de uma verdadeira brigada de bebês para que Milosevic repensasse a medida. Ao perceber a força da B92, o regime censurou sua cobertura jornalística. A voz da revolta então ganhou a voz de Joe Strummer, Keith Flint e outros: DJs elaboraram o playlist da indignação, mesclando "White Riot", do Clash, as músicas explosivas do Public Enemy e as faixas de "Music For The Jilted Generation", do Prodigy, banda de techno-punk que também baixou em Belgrado para um show, um dos pouquíssimos durante o período de turbulência política. Soldados e policiais sérvios não compreendiam a língua inglesa, mas os universitários entenderam e aderiram ao movimento contra a ordem estabelecida. Por duas vezes, a B92 foi fechada. Mas não foi calada. Afinal, pela primeira vez, a Internet desempenhava papel decisivo em tempos bélicos, levando a verdade à população e à mídia internacional. Veran Matic conseguiu chamar a atenção de organizações humanitárias internacionais sobre a relevância da B92 como única fonte de informação e cultura em uma cidade sufocada pela loucura de um déspota. Incentivando passeatas pacíficas e até mesmo bem humoradas, baseadas na cultura pop e em personagens da política (ousadas ao abraçar bonecos do Pernalonga, Smurfs a um gigante de Milosevic), a rádio se manteve até o final da guerra, sem corromper seus ideais. Em 2000, Milosevic caiu. Morreu no tribunal de Haia antes de ser julgado pela prática de genocídio.
"Rádio Guerrilha - Rock e Resistência em Belgrado" ("This is Serbia Calling: rock´n roll radio and Belgrade´s underground resistence"), do jornalista londrino Matthew Collin, é o livraço que narra a história emocionante da B92. E o relato vai muito além das deliciosas referências ao rock alternativo. É Geopolítica pura. História recente e final da ex-Iugoslávia e da primeira grande tragédia depois do final da Guerra Fria.
Se você mora em São Paulo e curte rock alternativo, com certeza vai se identificar com o livro. O cenário desolador descrito pelos jovens moradores de Belgrado, salientando o caos, a corrupção, a violência, a política suja....bem lembram uma certa metrópole brasileira. O clube "Akademija", citado por jornalistas e saudosistas dos anos 80, evoca um parentesco distante com o lendário "Madame Satã". E os programas irreverentes, desbocados e destemidos da B92....têm o mesmo espírito corajoso e desafiante do nosso Garagem, programa de música independente que já passou pela rádio Brasil 2000 e pelo UOL (e que agora deu um tempo, mas voltará. Né, Paulão!?). Matic comandou a reação contra o "establishment" político e cultural. O símbolo da estagnação e do atraso era o turbo-folk. Em Sampa, Paulo César Martin, André Barcinski e Álvaro Pereira Júnior lutaram contra o "establishment" representado por uma MPB ditatorial que há décadas se divorciou da genuína cultura popular, das ruas. A B92 existe até hoje. Dá pra ouvir (www.b92.net). No site do Garagem há diversos programas arquivados (www.garagem.net). Ouvindo qualquer um deles, quem não conhece o programa pode descobrir que brasileiro seria o vilão equivalente a Slobodan Milosevic. Ouvindo o Garagem ou pesquisando no livro de registro de nascimentos, cartório civil, da baiana Santo Amaro da Purificação...

6 comments:

marcio castro said...

nossa, lindo moça. este trabalho é de utilidade pública mesmo.

valeu pela garimpagem. vou recomendar este post para vários amigos meus.

e ver um pouco mais sobre esta rádio e o livro. não saiu no brasil né? só importando?

fiquei muito curioso.
beijo.

Anonymous said...

Que demais ! Não consigo imaginar uma rádio que seja mais rock do que essa. Incrível história.

Ana, também interessei-me pelo livro. Não foi lançado aqui ?

Galaxy Of Emptiness said...

Oi! Lançaram aqui sim! Editora Barracuda. Nesse site tem uma matéria legal: http://www.rockpress.com.br/modules.php?name=News&file=article&sid=988

Anonymous said...

Obrigado Ana,

Não só peguei esse que você recomendou como acabei levando também o "Disparos do Front da Cultura Pop", que parece ser muito bom também.

A Barracuda agradece.

Galaxy Of Emptiness said...

Esse do Tony Parsons também é muito legal! Mas o da rádio conta uma história completamente diferente. É insólito. Rock, revolução, guerra, resistência....
Lê e depois fala o que vc. achou!

Anonymous said...

Respondo sim !

Vai demorar um pouco por causa das provas finais na universidade, mas te lembrarei de quem sou e do que falávamos.

Ainda quero assitir "Amor a Flor da Pele" e comprovar o que você disse.

Bye !