Selvagem. E elegância. E você logo pensa em um efeito próton e próton. Tente sobrepor as palavras. Não vai. Repele. Só que não. Ou não sempre. E nunca se alguém estiver, em transe, na frente de um tablado, jaula sem grades por onde serpenteia uma fera. Jehnny Beth. Pseudônimo inglês de Camille Berthomier, francesinha trabalhando em Londres. Estrutura óssea alongada, esguia, felina, esculpida em ângulos. Finamente embrulhada. A camisa branca de seda sustentada pelo omoplata se abre e desce rascunhando uma fenda central comprida. Para então só se fechar a um palmo da calça de alfaiataria que a segura ajustada, abraçando a cintura. Fios curtinhos margeando a face refinada, Jehnny Beth é a modelo clicada por Helmut Newton em 1975. Ganhou vida, despiu, deixou cair na calçada o casaco Yves Saint Laurent e saltou da fotografia que estampava uma página da Vogue, largando para trás o cigarro aceso sobre o asfalto de uma viela parisiense. Em 2013, novembro, era ela sim. Adornada, de baixo para cima, por luzes ao norte de Londres. Seus passos quebrados, quadril insinuando para os lados, andar deslizando e flutuando acima de uma massa de fisionomias hipnotizadas. Poderia ser uma manequim enfeitiçando desfile de alta-costura. Mas não era passarela. Palco sim. E, embora houvesse música, a melodia não escorria, sutil, delicada e artificial, de cantinhos no teto, como mero repeteco de um som gravado e mixado no passado. O som, orgânico, brutal, era liberado por explosões simultâneas. Violento Big Bang detonado em frenética artilharia por não um, mas quatro núcleos pulsantes: Jehnny Beth, sol branco, irradiando luz e energia moldadas como voz potente o bastante para incendiar Londres inteira. Em sua órbita, três estrelas negras. Lado esquerdo, a guitarrista Gemma Thompson. Aye Hassan, baixista, e seus três braços, na direita. Pairando sobre o resto da constelação, Fay Milton, tempestade de descargas elétricas estremecendo metais em uma bateria. A sincronia e harmonia entre esses quatro corpos celestiais são plenas. Gemma Thompson dedilha a guitarra na velocidade da luz, gritando melodias engrossadas por pancadas marciais que partem dos músculos de Fay Milton. O baixo, que você nem ouve, mas sabe que está lá, é a amálgama que dá coesão ao som (melhor definição para baixo que já ouvi: "não se nota sua presença, só sua ausência". Razão pela qual bandas como White Stripes não dão liga não só na melodia, mas no coração da gente). As meninas impressionam pela técnica. Guitarra, baixo, bateria e até um eventual piano (comandado por Jehnny) são manejados com perfeição. E é inevitável que o cérebro não vá, ao longo do show das Savages, digitando em sua mente: ensaios. Ensaios. Ensaios. Afinidade. Experiência. Cumplicidade. Anos. Até você se dar conta de que aquilo que se escuta não guarda sentido algum com o histórico da banda. Formada o ano passado. Meninas novinhas. Um só disco. Gravado há menos de doze meses. Gênero musical: pós-punk. Mas como, punk? Punk é improviso, ausência de virtuosismo, acordes básicos, simples, arranhados e espancados de um jeito que o som sai sujo. E genial. Então, como quatro garotas conseguem fazer um punk ultragenial, imundo, mas com mãozinhas esterelizadas, tocando...absurdamente bem?
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Os aplausos só arrefecem quando as meninas começam a deixar o palco. Jehnny Beth é a última de uma filinha indiana. Mas, de repente, para. Uma lembrança, retorno de uns passos até o microfone. O corpinho frágil se dobra, o braço direito se estica com graça até o chão. Até subir novamente, dedinhos suspendendo, como ganchos, as tiras de um par, em PVC preto reluzente, de delicados scarpins. Brutal e chique, Jehnny Beth marca, com garras de pantera, para sempre a nossa memória. E a história do rock.
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