"O Tempo Será Tua Lepra." Nobody likes the records that I play é o título legal, de uma música muito mais legal, criada por um DJ de nome ainda mais legal. DJ Tocadisco. E para tudo ficar definitivamente mais legal, informo: ele não é brasileiro, não é portuga. Tocadisco é alemão. (!)
Enfim. Ninguém gosta dos meus discos. Meus "melhores discos de 2009" não são os melhores de nenhuma lista de respeito. Bom, pelo menos também não são os piores. Simplesmente não existem nas listas dos descolados. Pensando bem, modificando:
nobody knows the records that I play. Então, apresento meus melhores discos desse ano, aí embaixo. Não são populares, não são hypados. Mas são meus.
"Lovetune for Vacuum", Soap&Skin
Quando eu tinha dezoito anos, um menino me magoou. Tentando me sentir melhor, eu escrevi uma poesia. Primeira e única da minha vida. Meiga, roguei uma praga em um dos versos:
"O tempo será tua lepra". Entreguei a poesia para o presidente da Academia de Letras do Largo São Francisco, faculdade onde eu estudava. Ele resolveu publicar na revista literária. E óbvio que eu me arrependi depois, he. Embora a poesia não citasse nomes, fiquei apavorada que o garoto sacasse a minha maldição. Não adiantou: publicaram, o cara se ligou e eu quase morri de vergonha. O único jeito era esperar os meses passarem e o povo se esquecer. Quando estava quase tudo superado, um degenerado (não por acaso meu melhor amigo) resolveu, ele, escrever um poema inspirado em Augusto dos Anjos, que é tipo o Zé do Caixão dos poetas brasileiros do início do século passado. Poema no qual o demente liricamente descrevia atos de intimidade com um cadáver. Da genitora dele (que na época era vivinha da silva, saudável e mãe amorosa). Eu quase enfartei quando o sacana avisou: "Você também foi homenageada! Coloquei aquela sua frase da lepra como epígrafe do poema. Seu nome embaixo, lógico, pra você ficar com o crédito!". Crédito? E desde quando ser vista como coautora pervertida (me perguntavam se eu tinha ajudado a escrever "aquilo") do estupro do presunto da mãe alheia, condenando-a à hanseníase
post mortem, me daria credibilidade no meio estudantil acadêmico-jurídico!?
Bom, lembrei dessa historinha quando descobri a Soap&Skin, banda de uma adolescente só. A austríaca Anja Franziska Plaschg, mocinha corada da foto acima que, com certeza, faria Robert Pattinson e todos aqueles vampiros mauricinhos de "Crepúsculo" borrarem as calças. Aos dezoito aninhos, Anja compôs "Lovetune for Vacuum", disco carregado com treze músicas. E que pesa treze toneladas. Foi lançado em abril, poucos dias depois de Anja completar dezenove anos na mesma data do aniversário do suicídio de Kurt Cobain. Anja é pianista clássica. Com total predileção pelo lado esquerdo do piano, onde ficam as oitavas mais graves. As melodias são uma mistura de piano soturno, às vezes mesclando violino, e eletrônico discreto. Sua voz é a mesma voz da cantora Nico, que acompanhava o Velvet Underground no final dos anos 60: timbre áspero, pronunciando palavras em um inglês fortemente impregnado de sotaque alemão.
E aí vem a pergunta que aparece na letra de "Sheila Take a Bow", dos Smiths: "How can someone so young sing words so sad?". Uma das faixas do álbum se chama "Marche Funèbre". A morte é tema frequente nas canções, mas as letras nunca são piegas. E a impressão é a de que Anja é mesmo um vampiro de 1800 anos de idade, não uma menina de 18. Em "
Thanatos", ela quase sussurra: "Torn open tomb/I fell in your/Cold fission bomb/I fell in your war". No vídeo da canção, parece que Anja está sendo enterrada viva, com terra e chuva caindo sobre o seu rostinho.
Não há muitas informações em inglês na web sobre a Soap&Skin. Não consegui adivinhar se a menina realmente sofre, sofreu ou finge que sofre. Dizem que, durante os shows, às vezes ela se retira do palco, justificando que não consegue suportar o peso daquilo que canta. Não sei se tudo isso é golpe publicitário ou se tamanha amargura é sincera. Só sei que, ouvindo a letra de "
Spiracle", canção cuja melodia é a mais "feliz" do álbum, quase em
staccato, a gente torce desesperadamente para que tudo aquilo que ela canta seja tão mentira quanto o conteúdo do poema em que o Rafael dá uns pegas na mãe defunta: "When I was a child/I toyed with dirt and I fought/As a child, I killed the slugs I bored with a bough/In their spiracle/When I was a child, fears pushed me hard/In my head, In my neck, in my chest, in my waist, in my butt/I still beg, please help me/When I was a child/I threw with dung as I fought/As a child, I killed all thugs and I bored with a bough/In their spiracle/When I was a child, foes pushed me hard/In my In my neck, in my chest, in my waist, in my butt/I still beg, please help me".
Seja como for, não dá para negar que "
Extinguish me" é uma obra de arte, em melodia e letra. Se aos dezoito, Anja escreveu mesmo versos como
esses, o que ainda virá pela frente - se ela sobreviver?
Quanto à minha história da lepra, um esclarecimento: testemunhos recentes garantem que o menino que me magoou (atualmente perto de completar quarenta anos, he) não foi afetado por minhas duras palavras. Sua pele está OK, nariz, orelhas, tudo no lugar. Bem, quase tudo, vai.
O Tempo Foi Sua Calvície.
"Everything Goes Wrong", Vivian Girls
Três garotas do Brooklyn, NY: uma morena, uma loira, uma ruiva, todas de franjinha. Mistura de punk com shoegaze que deu muito certo. Porque elas tocam muito bem. Hoje em dia, qualquer banda nova que não tem o mínimo de domínio dos instrumentos vem com a desculpa: nosso som é assim, "confuso", "caótico" e "moderno", porque é shoegaze. Sei. É fácil se rotular shoegaze, o difícil é criar melodias que dêem sentido à uma maçaroca de sons, guitarra e baixo soando alto e com distorção. As meninas conseguem. E tocando rápido músicas curtas, igual ao punk. Mas com a delicadeza típica das (boas) bandas de shoegaze, como My Bloody Valentine. Engraçado é o vocal da banda. As três são vocalistas. O que não quer dizer que as três se alternem a cada música. As três cantam juntas, quase sempre, o que inclui a baterista. Sei lá o porquê. Talvez seja porque ninguém quis ser vocalista, então as três resolveram compartilhar o fardo. Ou o contrário, todas queriam cantar. Ou nenhuma se lembrou de resolver a questão jogando "dois ou um" ou "dedos". Ou nada disso. Seja como for, a "cara" da voz da banda é um corinho, uma fusão de três vozes. E esse detalhe deixa tudo ainda mais suave e lindo, é só ouvir "
When I'm Gone" e "
Before I Start to Cry" para perceber. A baterista Ali Koehler é minha nova heroína, he. Canta, soca os pratos e balança a cabeça para a frente e para trás, sem nunca deixar cair os óculos fundo-de-garrafa. Como, moça? Se basta eu espirrar, para que os meus voem longe?
"Broken", Soulsavers
Tá, tem Mark Lanegan no disco. Ele escreveu a maioria das letras. Mas as melodias foram compostas pelos ingleses Ian Glover e Rich Machin, oficialmente a dupla Soulsavers. E as melodias são maravilhosas! De nada valeriam boas letras se elas adornassem melodias medíocres (como acontece em 50% da MPB - porque nos outros 50% as letras também não prestam), não é? Então não me sinto jabazeira em, mais uma vez, hehe, levantar a bola do Markão. "Broken" é soul, com eletrônico, country, gospel e rock de guitarras. Aquele tipo de disco legal, em que gente boa de fora da banda dá pitacos e um reforcinho em cada faixa. Mike Patton, do Faith No More, canta junto do Lanegan em "
Unbalanced Pieces". Richard Hawley, ex-Pulp, adiciona sua voz a "
Shadows Fall", enquanto Jason Pierce, do Spiritualized, está em "
Pharaohs Chariot" e Gibby Haynes, vocalista do Butthole Surfers, na faixa mais roqueira e esquizofrênica do álbum, "
Death Bells". Tem uma cantora australiana para contrapor uma voz macia às trovoadas que saem da garganta do Lanegan: Rosa Agostino (nome tão australiano quanto o alemão Tocadisco), da banda de uma mulher só, Red Ghost (virou moda. Cat Power fez escola). Só que Rosa é meio pálida. Wendi Rose e Carmen Smart são as vocalistas negras que justificam o "soul" do Soulsavers. Meu momento preferido em "Broken" é o Lanegan encerrando "Shadows Fall". "When shadows fall from above/Stay close to me, my love". Ai, Jesus Cristo. Assim meu coração derrete. Como bem anunciou Sidney Magal naquela música de abertura de novela..."me chama que eu vou!".