Friday, August 21, 2009

The Pretender





O poeta é um fingidor./Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/A dor que deveras sente ("Autopsicografia", Fernando Pessoa).

Foram duas as obsessões de Viktor Shklovsky. A Rússia. E Elsa Triolet. Em 1922 a vida em Berlim não era uma opção para o escritor. Cumpria uma imposição. Os liberais contrários à truculência bolchevique foram forçados a deixar o país. Os revolucionários derrubaram a monarquia e sentenciaram o czar à morte, mas negavam ao povo russo o direito a uma Constituição. Shklovsky e outros compatriotas refugiados viviam falsa liberdade na Alemanha. Para Viktor, a tristeza dos poetas e artistas exilados se comparava à melancolia do zoológico de Berlim: animais presos, impedidos de voltar para casa. O escritor era um homem acostumado ao provincialismo de sua pátria, um admirador da simplicidade campestre que um contemporâneo russo - o pintor Marc Chagall - reproduzia em suas telas. Shklovsky sentia-se repudiado pela burguesa e sofisticada Europa. A elegância e frieza européias eram a exata personificação de Elsa. E Elsa era a rejeição.

Elsa Kagan se casou com o francês André Triolet depois da revolução. Moraram no Tahiti até a relação se deteriorar. Triolet retornou para Paris. Berlim foi o destino da linda Elsa, escritora como Viktor.
Em Berlim, Viktor Shklovsky amou a Rússia e Elsa Triolet. Mas sua musa se mostrou tão inacessível quanto sua pátria. Ao escritor não era permitido estar em seu lar, da mesma forma que não era autorizado a demonstrar o seu amor. Viktor e Elsa se comunicavam por cartas. Ela vetou suas visitas, negou telefonemas. Ele escreveu uma carta. “I seem to be sinking, but even there, underwater, where the phone doesn’t ring and rumors don’t reach, where it’s impossible to meet you – I’ll go on loving you. (…) in Russia, I was strong, here I have begun to weep”. A resposta dela foi uma ordem. “Don’t write to me about love. I do not love you and I will not love you. Be light-hearted or else you’ll fail at love”.

“Zoo – or Letters Not About Love” é o livro no qual Shklovsky reuniu suas cartas enviadas para Elsa. E as poucas que recebeu dela. Na obra, o nome de Elsa é modificado. Em cada carta de Viktor, um esforço para burlar a proibição de Alya (Elsa)....e escrever sobre seu amor. Metáforas foram escolhidas como disfarces para declarações apaixonadas e desabafos frustrados do poeta fingidor. Descrições sobre chuvas e enchentes na cidade ocultam o desejo de confessar seu choro convulsivo. A sua desesperança é implicitamente comparada a um carro quebrado. A menção de uma ilha distante insinua o amor inatingível.

Na Alemanha da década de 20, Viktor Shklovsky não teve permissão para falar de amor. Solitário em Berlim, o russo talvez necessitasse de consolo. E conselhos também. De uma voz que pudesse pronunciar palavras semelhantes às quais havia sido obrigado a calar. Que traduzisse em poesia (e melodia) o desespero de um sentimento abafado. E que delicadamente o lembrasse de que o desamor pode ser digno de uma compaixão menos trágica - e mais patética. Viktor precisava das letras e canções Matt Berninger.
Matt Berninger é o frontman do The National, banda novaiorquina que se formou em 1999. Guitarras, piano, violino e os vocais barítono de Berninger se unem em músicas cuidadosamente criadas para serem ouvidas com o coração. Berninger é mestre em converter desilusão, saudade, melodrama e obsessão em letras breves e marcantes, homenagens para quem ama em silêncio. Matt escreve canções para aqueles que convivem com fantasmas na memória, que encenam diálogos imaginários com quem passou, marcou, foi embora – e nunca vai responder. Versos de “Fashion Coat” por coincidência revelam a angústia do expatritado Shklovsky: “I die fast in this city/outside I die slow/I’m not stupid I swear/I read the foreign news to understand my nation (…) everywhere I am is just another thing without you in it”. Quando, em uma carta, Viktor inventou um conto de fadas para driblar a proibição de Elsa (“A hermit once fell in love with a mouse – a strange love, but in Berlin, loneliness will make a person do anything – and he turned her into a girl”), anos e anos depois, na linda “Patterns of Fairytales”, Matt escancarou: “I’m turning on the stereo/And I’m turning into fairytales/Yes, I’m turning on the stereo/And I’m turning into you”. E na vigésima terceira carta, o escritor não aguentou mais: “I am tired of writing not about love. Set my words free, so that they can come to you like dogs to their master and curl up at your feet”. Se de alguma forma Shklovsky pudesse ouvir a advertência de Berninger em “Val Jester” (“Take your time when you tell her how she lives in your blood”), quem sabe seria poupado da explosão impaciente e impiedosa de Elsa Triolet: “You are violating our pact. You are writing me two letters a day. A lot of letters have accumulated. I have filled the drawer of my writing desk, my pockets and my purse are overflowing. On various pretexts, you keep writing about the same thing. Quit writing about HOW, HOW, HOW much you love me, because at the third ‘how much’, I start thinking about something else”. Um salto no tempo e Matt complementaria os temores de Viktor: “You clean yourself to meet the man who isn’t me/You’re putting on a shirt/A shirt I’ll never see/The letter’s in your coat but no one’s in your head/Cause you’re too smart to remember/You’re too smart/Lucky you” (“Lucky You”).

Em 1923, Viktor Shklovsky escreveu uma última carta em Berlim. Que não foi endereçada para Alya, e sim para o comitê central executivo russo. “Bitter is the anguish of being in Berlin, as bitter as carbide dust. Don’t be surprised that this letter follows some letters written to a woman. I’m not getting a love affair involved in this matter. The woman I was writing never existed. Perhaps there was another, a good comrade and friend, with whom I was unable to come to terms. Alya is a realization of a metaphor. I invented a woman and love in order to make a book about misunderstanding, about alien people, about an alien land. I want to go back to Russia”.

Viktor Shklovsky aprendeu e acostumou-se a fingir. Fingindo, teve seu amor recompensado. Elsa Triolet casou-se de novo. Mas Viktor Shklovsky morreu em Moscou, em 1984. Sessenta e um anos após ser novamente acolhido pela Rússia.

2 comments:

Cris Ambrosio said...

Estranha impressão de conhecer a história do Shklovsky. Devo ter lido no jornal sobre o livro, sei lá. E o engraçado é que mesmo tendo esquecido da parte Berlim/Rússia e tudo mais, isso de escrever cartas por amor, mas sem falar de amor ficou no inconsciente. Ficou lindo mesmo, como prometido! ;)

Inevitável: Ô mulherzinha insensível.

Galaxy Of Emptiness said...

Obrigada, Cris!

O livro não saiu aqui. Eu encomendei depois que vi a peça de teatro, que é lá daquela companhia do Felipe Hirsch (por isso que vc. leu algo no jornal). A peça é bem simples e bonita, com o Leonardo Medeiros e a Simone Spoladore (que é linda de doer e boa atriz).