Sunday, April 19, 2009

Rob Fleming X Steven Stelfox




Literatura indie. Quem é o personagem herói de dez entre dez fãs de Radiohead, PJ Harvey ou Teenage Fanclub? O nerd Rob Fleming, criado pelo britânico Nick Hornby para protagonizar o livro "High Fidelity", de 1995. Londrino, na faixa dos trinta anos, dono de uma modesta lojinha de discos, Rob era o camarada "gente como a gente" que ganhava pouco, sofria com a indiferença da ex-namorada, listava as melhores canções, álbuns e filmes de sua existência. E vivia para a Música, sua paixão.

E em 2008, eis que finalmente aparece o vilão! Invenção do escocês John Niven, o autor do hilário livro "Kill Your Friends". Steven Stelfox tem vinte e sete anos na Londres de 1997. Tony Blair no comando, Spice Girls no auge, morte da princesa Diana, "OK Computer" assombrando o mundo e o Britpop ainda em plena forma. Da mesma maneira que Rob Fleming, Stelfox ganha a vida graças ao comércio de Música. Só que as semelhanças começam e terminam aí. Stelfox lucra rios de dinheiro, que gasta em baladas milionárias, cocaína e mulheres. Despreza todo e qualquer ser humano, é dissimulado, sarcástico, manipulador. Assassino. E deixa bem claro: Música tem uma única função. Vender e render. "I don't care which genre something comes from - rock, trance, hip hop, Bulgarian fucking heavy metal - as long as it's profitable".

Na história de John Niven, o espertalhão Stelfox é executivo de uma gravadora fictícia, poucos anos antes da revolução on line (quando o Napster - programa então ilegal de compartilhamento de música pela web - decretou o começo do fim da hegemonia da indústria fonográfica). Steven é um A&R: Artiste & Repertoire. Ou seja, o sujeito encarregado de encontrar, desenvolver novos talentos e fechar contratos. Stelfox odeia o trabalho. Mas finge que adora. Mente para clientes, para os chefes e colegas, para os músicos que adula. E a graça do livro se sustenta justamente na ironia sem papas na língua do psicótico personagem: misturando artistas e bandas de verdade com gente inventada, sobra para todo mundo. Stelfox detona os peixes grandes do mainstream: "Madonna, Bono, the Spice Girls, Noel Gallagher, Kylie...do you really think any of that lot are talented? Don't make me fucking laugh. What they are is ambitious. This is where the big money is. Fuck talent. Forget Rock and Roll, if he'd just turned the other way out of the schoolyard Bono could have been a very successful CEO of a huge armaments manufacturer". Se leu o livro, Geri Halliwell, Spice Girl nos anos 90, deve ter adorado esse trecho: "In return for her fifteen minutes I guarantee you that Geri Halliwell would have risen at the crack of dawn every morning for a year and swum naked through a river of shark-infested, HIV-positive semen - cutting the throats of children, OAPs and cancer patients and throwing them behind her as she went - just to be allowed to do a sixty-second regional radio interview".
E se os grandes são espezinhados, Stelfox destrói de vez as pretensões de bandas alternativas, que ele detesta contratar: "The indie kids figure that (...), just as they were influenced by someone - The Velvet Underground, Jonathan Richman, the Stooges, whoever - then, in the future, young bands will be influenced by them. Maybe so. Maybe a few thousand malnourished cockless freaks scattered around the globe will give a shit. So what? Real people don't care, do they? Real people put stone cladding and UPVC double-glazing on their council houses, they buy four albums a year and they want to be able to hear all the words. And there are fucking billions of them". Entendeu, Rob Fleming?
Stelfox mete o pau não somente nas pessoas, mas também nos eventos relacionados a música. Premiações televisionadas, como o Brit Awards? Um tédio, mas grande oportunidade para conseguir droga na banheiro. Festivais de rock? Quando perguntado por uma banda iniciante sobre como seria a "vibe" do Glastonbury, Steve mente: "Oh, Glastonbury? It's just the most incredible...atmosphere". E depois ironiza para o leitor: "If you reckon that the atmosphere in medieval England - plague, filth, disease and billions of mud-spattered tolers everywhere - would qualify as incredible, then Glastonbury is indeed incredible". E é no backstage de um show que Stelfox cruza com Deborah Harry: "Debbie Harry from Blondie walks by, dressed head to foot in crimson - topped off with a bunch of red roses for a hat. She looks shocking, like an old hooker who's fallen on hard times and gone crazy". Fino e educado.
Olha, não tenho muito o que dizer sobre o livro. Por um simples motivo: não dá, só lendo. São 324 páginas. Em todas, existe um comentário ultra-ácido. Ou uma maldade, uma tirada de sarro genial. Palavrões aos montes. Pó entrando no nariz de alguém. Ou sexo. Algumas vezes, tudo isso junto (quem será o diretor corajoso que vai tentar passar a história para as telas?). É impossível parar de ler (mesmo sendo escrito em um inglês dos infernos, repleto de gírias e expressões londrinas que, não adianta, você não vai entender cem por cento. Não precisa. Tem ótimas sacadas a rodo para garantir diversão por horas). "Kill Your Friends" foi escolhido um dos melhores livros do ano passado pela revista britânica Word. Na contracapa do livro, James Dean Bradfield, vocalista e guitarrista da banda indie Manic Street Preachers, mostra que levou a sátira numa boa e "elogia" o Rob Fleming do Mal: "One of the evilest, most vicious, despicable characters ever. I couldn't put it down". Será que Joe Strummer faria o mesmo? No meio do livro, um policial se admira ao ver uma foto no escritório de Stelfox: o executivo abraçado ao vocalista do Clash. E pergunta: "Como ele é?". Stelfox responde para o tira: "Joe? He's a sweetheart." E para o leitor: "A washed-up cunt".
John Niven fala com conhecimento de causa: Steve Stelfox é baseado em tipos inescrupulosos que Niven conheceu quando trabalhava no departamento de marketing da finada London Records. Em artigo publicado no Times On Line, ele conta ter aprendido que gravadoras não gostam de música. Que, em reuniões de executivos da indústria da música, artistas são apelidados de "clowns", "losers". Que discos são chamados de "piece of shit". E que não se pode prever se uma banda vai ou não ser sucesso (segundo Niven, um respeitável executivo atirou pela janela do quarto andar o primeiro CD do White Stripes, sentenciando que ninguém compraria tamanha droga. O próprio Niven não botou fé no estouro do Coldplay, banda que, na opinião dele, era mais uma cópia de Radiohead).
Fleming ou Stelfox. Um, bom moço, uma enciclopédia de sapiência musical, o amigo gente boa que todo indie quer ter. O outro, mau caráter, conhecedor e admirador dos podres da indústria fonográfica, o sujeito politicamente incorreto que ridiculariza o mundinho indie e o mundão mainstream. Fleming, simpático, mas sonhador. Stelfox, safado, mas lúcido.
Leia os livros e escolha seu herói - ou anti-herói - preferido.
Eu fecho com o destemido, divertido e desbocado Steven Stelfox.

5 comments:

Annix said...

djênio! lerei!

Galaxy Of Emptiness said...

Hehe, vai rir bastante...o cara deve ter feito dezenas de inimigos escrevendo esse livro!
Eu te empresto quando vc. vier, não compra não!
Bjs!

Daniel said...

Não li o livro ainda, mas é difícil escolher. Fico em cima do muro.
Rob Fleming era o camarada, o gente boa, mas era cheio de esquisitices, com aquele viés todo sistemático, cheio de manias e intolerância frente ao gosto musical alheio. É uma anti-herói em outro sentido. Isso que o tornava interessante e não a lojinha de discos.

Interessante esse Stelfox. Personagens desbocados e inconsequentes sempre são uma boa pedida. Em livro com pano de fundo musical, melhor ainda!

Gostei da definição dele para o Joe Strummer, bem respeitosa! rs

Galaxy Of Emptiness said...

Ah, é muito divertido, viu!! E tem história, tem uma trama legal!
Tem um pedaço em que ele fica inconformado porque um DJ horrível caiu nas graças das pessoas depois que sofreu um derrame e teve paralisia. O comentário: "de uma hora pra outra o fulano virou o Stephen Hawking do drum'n bass"!, rs!

Cris Ambrosio said...

Ah, pobre Joe Strummer! É invejaaa! xD

Mas deve ser aquela coisa: se esse John Niven conseguiu criar um personagem tão "malvado" como esse, é porque ele entende perfeitamente os Rob Flemings da vida. E putz, preciso ler Nick Hornby.