"Woman With Flowery Hat" (ceramic), Picasso, 1964 e Baria Qureshi, ex-guitarrista e ex-tecladista do The XX.
Monday, July 29, 2013
Saturday, July 27, 2013
Tuesday, July 16, 2013
Tuesday, July 09, 2013
The Song is You
"The universe just vanished out of sight/And all the stars collapsed behind the pitch black night/And I can barely see your face in front of mine/But it is knowing you are there that makes me fine." ("Warmer Climate", Snow Patrol)
"Separação", Edvard Munch.
"Separação", Edvard Munch.
Naquela época, um pedregulho encravado em mim, não um coração. Só pode ser isso. Faz dois anos, acho. Comprei em Londres, livraria grande na Charing Cross. Prateleira dos livros recomendados pela casa. Um casal adolescente em preto-e-branco (nunca uma capa foi tão dissonante da história por trás dela), elogio do New York Times, música no resumo da trama. E um nome superatraente. "The Song is You". Levei. Desembarcou na minha estante, entrou na fila das leituras futuras. Por um ano, até eu me lembrar. Testado. Três páginas. Raso, sentimental, chato. E nunca uma impressão minha foi tão dissonante da verdade. Minha maior injustiça literária. Mais um ano, até semana passada. Separando o acervo para doação. Soprei a poeira, abri. Primeira página, até que não parece tão ruim quanto antes. Capítulo introdutório, lido de pé. Puxa vida. É lindo.
Arthur Phillips. Quem? É, eu não tinha o mínimo conhecimento sobre a existência dessa criatura. Americano, 44 anos, boa-pinta até. Quatro ou cinco livros publicados, autor elogiado. "One of the best writers in America", etiqueta dada pelo Washington Post piscando na testa do moço. Para mim, ilustre desconhecido até então. Duzentas e cinquenta páginas depois...dá licença, Post, posso passar um branquinho por cima do "America" e botar um "in the world" no lugar? Ou ao menos um "in my world"?
Você já leu essa história, não? Homem, quarenta e poucos anos, apaixonado por rock e música pop. Vida sentimental devastada, vida profissional no piloto automático. É, de novo. Dessa vez, ele atende por Julian Donahue, morando em Nova York, diretor de comerciais para a TV bem estabilizado no ramo. Só que Arthur Phillips não é um escritor como Nick Hornby ou David Nicholls, pai do sofrido "One Day". Existe um humor zombeteiro que dá ritmo e impulsiona os livros dos ingleses, mesmo não sendo tão constante na trama de "One Day" como nas histórias de Nick Hornby. O americano fez diferente. Em "The Song is You", o humor é pontual, sarcástico, politicamente incorreto, concentrado e cuspido por um único personagem, o ácido, narcisista e acomodado irmão de Julian. "Você sempre viveu à sombra do papai", diz Aidan para Julian, "não me admira que sua única parte boa seja a perna que tomou sol". Ou ainda fulminando, quando perguntado por um Julian criança e duvidoso quanto à correção da teoria de Charles Darwin: "Se Lamark estivesse certo, nós dois seríamos pernetas". O pai dos rapazes, ex-soldado, teve uma perna amputada após ferido em combate.
O autor não dá a Julian o direito de ser engraçado, leve. É um homem que sustenta nos ombros as lembranças dolorosas de um filhinho morto. E Phillips não alivia: passa um bisturi de cima a baixo na alma do rapaz, escancara e analisa toda fragilidade, culpa, medo do futuro alojados em um Julian resignado a envelhecer na solidão, acalentado por música e por seus fantasmas. Até a aparição de Cait.
Noite de inverno, um pequeno clube no Brooklyn. Semipocilga onde se apresentam bandas de rock locais. Julian está lá não exatamente pelo som, mas para afanar um pouco de papel higiênico (!) no banheiro. É ao acaso então que é surpreendido pelo show da iniciante Cait O'Dwyer's, vocalista, compositora e líder de uma banda que leva seu nome. Ruivinha, tatuada, "an Irish angel trapped in the body of your best dreams", como mais tarde um DJ a definiria. Julian detecta o talento potencial da menina, seus modelos (Nico, Siouxsie, PJ Harvey...), ao mesmo tempo em que identifica a necessidade de pequenos ajustes em excessos que podem emperrar, ou enterrar, uma carreira promissora. Além do papel, sai do clube levando para casa uma demo com músicas de Cait.
O encantamento gradual de Julian pela voz e melodias da cantora, que aos poucos se transfere para a própria moça, é onde reside toda a poesia do livro. Arthur Phillips é um mestre das metáforas, dotado de uma habilidade surpreendente para tecer e posicionar as palavras em frases impregnadas de lirismo. Qualquer apaixonado por música sabe o que é ser fisgado pela canção certa, na hora precisa, em um instante muitas vezes rotineiro e banal. É o que rola com Julian, ao ser abatido pela força de uma das faixas de Cait baixadas para o iPod: "the disembodied voice filters all feeling and also causes it. The dense terrine of feeling in Julian - regret, hope, sorrow, faltering ambition, longing - startles him. It could not be produced in such concentration and quantity without the voice, and so, after this moment on the train platform, he comes to crave because it reveals the feelings he could not find in silence".
Arthur Phillips toma a cautela em não pintar Julian como stalker patético, tiozinho assanhado. Criou um Julian constrangido pela própria autocrítica, pelo desconforto em ser o rosto envelhecido entre uma plateia de fãs vinte anos mais nova ("and he went home - eighteen years old and eighty years old in flickering alternation - and put on her demo"), pela esperança da redenção através de uma mulher idealizada. Mesmo porque, Julian não é um lunático. Cait o nota. Durante mais um show no clube, por mera diversão, ele rascunha caricaturas, conselhos e críticas a Cait, nas superfícies de papelão de alguns descansa-copos ("Indulge no one's taste but your own". "Hate us without trepidation"....). O barman recolhe as rodelinhas, que caem nas mãos da cantora. É o que basta para despertar a curiosidade da moça, surpresa por finalmente ser confrontada, em meio à massa crescente de bajuladores, por alguém aparentemente sincero. Cait investiga, descobre Julian.
O romance engrena. E a nossa paz termina. Porque não existe contato físico. De início, a reação de Cait é sutil. As letras das músicas que escreve serão o subterfúgio para se declarar a Julian, subliminarmente. Ele saca. E a vida ganha sentido, uma razão para não sucumbir aos destroços do passado. Os dois não se conhecem pessoalmente, não se encontram. Mas, de forma indizível, sentem o conforto e o consolo da presença incorpórea um do outro. Com o tempo, algumas mensagens e telefonemas são trocados. E aí, sim, vão crescendo a ansiedade, a apreensão, a insegurança geradas pela expectativa de um encontro que, se real, pode vir a ser o início de um fim - que não teve começo. E não é apenas Julian que se sente intimidado pela menina que, dia-a-dia, vai conquistando o mundo: "...London's fearsomely bored critics purred and sighed, offered their thummies to her for rubbing". Cait é jovem, incerta quanto ao seu talento, temerosa de não ter mais nada a oferecer a Julian além de sua música. O almejado sucesso a paralisa quase na mesma medida em que, sobre um palco e com uma multidão derramada a seus pés, a fascina: "she looked out over the sea of faces and bodies and did not distinguish between them, or wish to, any more than an explorer of distant lands would care to distinguish among the waves that carried him through the velvet night to the next spiced port".
Uma boa e uma má notícia sobre "The Song Is You". Primeiro, a boa. "A Canção é Você" existe, o livro foi lançado aqui pela editora José Olympio (com uma capa tão nada a ver quanto à da edição inglesa. Provável tentativa, acho eu, de coaptar os leitores do Nicholas Sparks. Tiro na direção errada). A má: a tradução é de chorar. Faria corar de vergonha o Google Translate, caso ele tivesse bochechas para tanto. Abri ao acaso um exemplar, em uma livraria perto de casa, e li uma frase qualquer. O que no original é "if you're ever lucky enough to see one of the truly great ones perform, you don't walk out the door the same man that walked in", virou "se você tiver sorte suficiente para ver um dos grandes tocar, não saia pela porta por onde o mesmo homem entrou."
Inglês ou português, poucas são as resenhas sobre o livro. O Google não me mostrou muitas. A do New York Times é bem entusiasmada; conta bastante, mas sem estragar o prazer de ler. Por estas praças, só encontrei texto do Zeca Camargo. Que, pelo jeito, ficou tão abobado quanto eu, principalmente com estilo elegante da escrita.
Só que Arthur Phillips não é só um artesão que maneja vocábulos como se fossem fios de ouro. Ele sabe injetar clima ao romance. Suspense. Ânsia pelo próximo parágrafo. O safado tem você na mão. Adia, te enrola, protela, se faz de bobo e finge desconhecer o desfecho que você, a certo ponto, está mentalmente implorando para que seja revelado. E a tortura se prolonga não só até as últimas páginas, não apenas até a última folha....mas praticamente até a última frase! Você carrega o livro na bolsa ou embaixo do braço. Fila da padaria, elevador, sala de espera de médico. Não dá para esperar chegar em casa e resgatar na estante. Você tem que ler....agora. E quando você começa a torcer para que um congestionamento no trânsito, na volta do trabalho, te presenteie com uns minutos de leitura dentro do carro...é porque o responsável por tudo isso tem seus méritos.
"The best moments in reading are when you come across something - a thought, a feeling, a way of looking at things - which you had thought special and particular to you. And now, here it is, set down by someone else, a person you have never met, someone even who is long dead. And it is as if a hand has come out, and taken yours” (Alan Bennet, escritor).
Mr. Phillips, prazer em conhecê-lo. Desculpa aí o mau jeito, a inicial recepção fria do seu livro, tão lindo, na minha humilde residência. Foi mal. Seus outros livros terão a atenção merecida, acredite. De hoje em diante, fica a promessa. Tamo junto.
Você já leu essa história, não? Homem, quarenta e poucos anos, apaixonado por rock e música pop. Vida sentimental devastada, vida profissional no piloto automático. É, de novo. Dessa vez, ele atende por Julian Donahue, morando em Nova York, diretor de comerciais para a TV bem estabilizado no ramo. Só que Arthur Phillips não é um escritor como Nick Hornby ou David Nicholls, pai do sofrido "One Day". Existe um humor zombeteiro que dá ritmo e impulsiona os livros dos ingleses, mesmo não sendo tão constante na trama de "One Day" como nas histórias de Nick Hornby. O americano fez diferente. Em "The Song is You", o humor é pontual, sarcástico, politicamente incorreto, concentrado e cuspido por um único personagem, o ácido, narcisista e acomodado irmão de Julian. "Você sempre viveu à sombra do papai", diz Aidan para Julian, "não me admira que sua única parte boa seja a perna que tomou sol". Ou ainda fulminando, quando perguntado por um Julian criança e duvidoso quanto à correção da teoria de Charles Darwin: "Se Lamark estivesse certo, nós dois seríamos pernetas". O pai dos rapazes, ex-soldado, teve uma perna amputada após ferido em combate.
O autor não dá a Julian o direito de ser engraçado, leve. É um homem que sustenta nos ombros as lembranças dolorosas de um filhinho morto. E Phillips não alivia: passa um bisturi de cima a baixo na alma do rapaz, escancara e analisa toda fragilidade, culpa, medo do futuro alojados em um Julian resignado a envelhecer na solidão, acalentado por música e por seus fantasmas. Até a aparição de Cait.
Noite de inverno, um pequeno clube no Brooklyn. Semipocilga onde se apresentam bandas de rock locais. Julian está lá não exatamente pelo som, mas para afanar um pouco de papel higiênico (!) no banheiro. É ao acaso então que é surpreendido pelo show da iniciante Cait O'Dwyer's, vocalista, compositora e líder de uma banda que leva seu nome. Ruivinha, tatuada, "an Irish angel trapped in the body of your best dreams", como mais tarde um DJ a definiria. Julian detecta o talento potencial da menina, seus modelos (Nico, Siouxsie, PJ Harvey...), ao mesmo tempo em que identifica a necessidade de pequenos ajustes em excessos que podem emperrar, ou enterrar, uma carreira promissora. Além do papel, sai do clube levando para casa uma demo com músicas de Cait.
O encantamento gradual de Julian pela voz e melodias da cantora, que aos poucos se transfere para a própria moça, é onde reside toda a poesia do livro. Arthur Phillips é um mestre das metáforas, dotado de uma habilidade surpreendente para tecer e posicionar as palavras em frases impregnadas de lirismo. Qualquer apaixonado por música sabe o que é ser fisgado pela canção certa, na hora precisa, em um instante muitas vezes rotineiro e banal. É o que rola com Julian, ao ser abatido pela força de uma das faixas de Cait baixadas para o iPod: "the disembodied voice filters all feeling and also causes it. The dense terrine of feeling in Julian - regret, hope, sorrow, faltering ambition, longing - startles him. It could not be produced in such concentration and quantity without the voice, and so, after this moment on the train platform, he comes to crave because it reveals the feelings he could not find in silence".
Arthur Phillips toma a cautela em não pintar Julian como stalker patético, tiozinho assanhado. Criou um Julian constrangido pela própria autocrítica, pelo desconforto em ser o rosto envelhecido entre uma plateia de fãs vinte anos mais nova ("and he went home - eighteen years old and eighty years old in flickering alternation - and put on her demo"), pela esperança da redenção através de uma mulher idealizada. Mesmo porque, Julian não é um lunático. Cait o nota. Durante mais um show no clube, por mera diversão, ele rascunha caricaturas, conselhos e críticas a Cait, nas superfícies de papelão de alguns descansa-copos ("Indulge no one's taste but your own". "Hate us without trepidation"....). O barman recolhe as rodelinhas, que caem nas mãos da cantora. É o que basta para despertar a curiosidade da moça, surpresa por finalmente ser confrontada, em meio à massa crescente de bajuladores, por alguém aparentemente sincero. Cait investiga, descobre Julian.
O romance engrena. E a nossa paz termina. Porque não existe contato físico. De início, a reação de Cait é sutil. As letras das músicas que escreve serão o subterfúgio para se declarar a Julian, subliminarmente. Ele saca. E a vida ganha sentido, uma razão para não sucumbir aos destroços do passado. Os dois não se conhecem pessoalmente, não se encontram. Mas, de forma indizível, sentem o conforto e o consolo da presença incorpórea um do outro. Com o tempo, algumas mensagens e telefonemas são trocados. E aí, sim, vão crescendo a ansiedade, a apreensão, a insegurança geradas pela expectativa de um encontro que, se real, pode vir a ser o início de um fim - que não teve começo. E não é apenas Julian que se sente intimidado pela menina que, dia-a-dia, vai conquistando o mundo: "...London's fearsomely bored critics purred and sighed, offered their thummies to her for rubbing". Cait é jovem, incerta quanto ao seu talento, temerosa de não ter mais nada a oferecer a Julian além de sua música. O almejado sucesso a paralisa quase na mesma medida em que, sobre um palco e com uma multidão derramada a seus pés, a fascina: "she looked out over the sea of faces and bodies and did not distinguish between them, or wish to, any more than an explorer of distant lands would care to distinguish among the waves that carried him through the velvet night to the next spiced port".
Uma boa e uma má notícia sobre "The Song Is You". Primeiro, a boa. "A Canção é Você" existe, o livro foi lançado aqui pela editora José Olympio (com uma capa tão nada a ver quanto à da edição inglesa. Provável tentativa, acho eu, de coaptar os leitores do Nicholas Sparks. Tiro na direção errada). A má: a tradução é de chorar. Faria corar de vergonha o Google Translate, caso ele tivesse bochechas para tanto. Abri ao acaso um exemplar, em uma livraria perto de casa, e li uma frase qualquer. O que no original é "if you're ever lucky enough to see one of the truly great ones perform, you don't walk out the door the same man that walked in", virou "se você tiver sorte suficiente para ver um dos grandes tocar, não saia pela porta por onde o mesmo homem entrou."
Inglês ou português, poucas são as resenhas sobre o livro. O Google não me mostrou muitas. A do New York Times é bem entusiasmada; conta bastante, mas sem estragar o prazer de ler. Por estas praças, só encontrei texto do Zeca Camargo. Que, pelo jeito, ficou tão abobado quanto eu, principalmente com estilo elegante da escrita.
Só que Arthur Phillips não é só um artesão que maneja vocábulos como se fossem fios de ouro. Ele sabe injetar clima ao romance. Suspense. Ânsia pelo próximo parágrafo. O safado tem você na mão. Adia, te enrola, protela, se faz de bobo e finge desconhecer o desfecho que você, a certo ponto, está mentalmente implorando para que seja revelado. E a tortura se prolonga não só até as últimas páginas, não apenas até a última folha....mas praticamente até a última frase! Você carrega o livro na bolsa ou embaixo do braço. Fila da padaria, elevador, sala de espera de médico. Não dá para esperar chegar em casa e resgatar na estante. Você tem que ler....agora. E quando você começa a torcer para que um congestionamento no trânsito, na volta do trabalho, te presenteie com uns minutos de leitura dentro do carro...é porque o responsável por tudo isso tem seus méritos.
"The best moments in reading are when you come across something - a thought, a feeling, a way of looking at things - which you had thought special and particular to you. And now, here it is, set down by someone else, a person you have never met, someone even who is long dead. And it is as if a hand has come out, and taken yours” (Alan Bennet, escritor).
Mr. Phillips, prazer em conhecê-lo. Desculpa aí o mau jeito, a inicial recepção fria do seu livro, tão lindo, na minha humilde residência. Foi mal. Seus outros livros terão a atenção merecida, acredite. De hoje em diante, fica a promessa. Tamo junto.
Subscribe to:
Posts (Atom)