"Oh dancing with myself/ Oh dancing with myself/ Well, there's nothing to lose/ And there's nothing to prove/ I'll be dancing with myself". "Dancing with Myself", Billy Idol.
Ah, o ballet. Coisa linda. Como definir? Atividade física? É. Arte? Também. E as bailarinas, hein? Confeccionadas em outro material. Material de qualidade muito superior ao das fêmeas comunzinhas. Tipo eu. Olha só a Maria Tallchief aí em cima. Irving Penn fotografou a moça junto com George Balanchine, coreógrafo. A união da força com a delicadeza. Eram a Kim Gordon e o Thurston Moore do ballet.
Então tá decidido. Eu podia estar matando, eu podia estar roubando, mas estou aqui, humildemente, oferecendo meus bons préstimos à dança! O mundo maravilhoso, rosáceo e saltitante do ballet pode contar comigo!
Só falta aprender. Sim, preciso de um mestre para desenvolver, aperfeiçoar e desabrochar tamanho talento incubado. Primeira providência, a escola. Tem uma perto de casa. Melhor: fica no mesmo quarteirão da autoescola onde, tardiamente, aprendi a dirigir. Em poucos meses! Óbvio que as forças positivas e divinas, que harmonizaram minhas mãozinhas e pés dentro de um carro, pairam ao redor daquela quadra. Tal qual um campo magnético. Um Quadrado das Bermudas. Funcionou uma vez, funcionará de novo. Fui até lá, para a matrícula. "Oi, vocês têm aulas para adultos?". "Temos. Horário das cinco às seis". Cinco da tarde? Em São Paulo? Aulas para adultas ricas e desocupadas. "Qual seu nível?". Meu...nível? Hã...nível zero? Menos um? "Nunca fiz ballet". Risinhos das recepcionistas. Oras, nem comecei e já sou vítima de bullying! Ah, quer saber? Sai fora, sua escolinha lazarenta! Serei aluna em outro lugar! Dane-se! Tomara que o asfalto do Quarteirão das Bermudas ceda, que você afunde nas profundezas fétidas das entranhas terrestres e suma do mapa com tudo em volta! Quase tudo, vai. Menos com o Paulinho, da autoescola. Esse merece ser poupado. Ainda não aprendi a fazer baliza.
Só falta aprender. Sim, preciso de um mestre para desenvolver, aperfeiçoar e desabrochar tamanho talento incubado. Primeira providência, a escola. Tem uma perto de casa. Melhor: fica no mesmo quarteirão da autoescola onde, tardiamente, aprendi a dirigir. Em poucos meses! Óbvio que as forças positivas e divinas, que harmonizaram minhas mãozinhas e pés dentro de um carro, pairam ao redor daquela quadra. Tal qual um campo magnético. Um Quadrado das Bermudas. Funcionou uma vez, funcionará de novo. Fui até lá, para a matrícula. "Oi, vocês têm aulas para adultos?". "Temos. Horário das cinco às seis". Cinco da tarde? Em São Paulo? Aulas para adultas ricas e desocupadas. "Qual seu nível?". Meu...nível? Hã...nível zero? Menos um? "Nunca fiz ballet". Risinhos das recepcionistas. Oras, nem comecei e já sou vítima de bullying! Ah, quer saber? Sai fora, sua escolinha lazarenta! Serei aluna em outro lugar! Dane-se! Tomara que o asfalto do Quarteirão das Bermudas ceda, que você afunde nas profundezas fétidas das entranhas terrestres e suma do mapa com tudo em volta! Quase tudo, vai. Menos com o Paulinho, da autoescola. Esse merece ser poupado. Ainda não aprendi a fazer baliza.
Telefonema para outra escola. Atende uma senhora. Aulas para adultos às oito da noite. Ah, agora sim. Taí um horário que respeita o proletariado. "Você quer aulas para iniciante?". "Bom, tem algum curso, assim, tipo Mobral?". "Vem aqui, a gente dá um jeito em você. Ballet é bem repetitivo". "Sou analfabeta. De pai e mãe.". "Vem, a gente dá um jeito". "Sou mais dura do que um tanque de guerra". "Vem, a gente dá um jeito". "Tá. Mas eu mal dobro os joelhos".
Gostei desse lance vem-que-tem-jeito. Me senti uma cafeteira quebrada indo para o conserto. Então fui.
Lugar bacana, em um predinho. Corredores decorados com posters de dança, fotos, desenhos infantis nas paredes. Cool. Dois lances de escada. Cansada só de ir até a secretaria. "Oi, eu falei ontem com a senhora, pelo telefone". "Ah, sim. Iniciante, não é?". "Há esperanças para mim?". "Sim, você pega rápido o jeito". "A senhora dança?". "Dançava". "Pegou rápido o jeito?". "Fui balarina por sessenta anos". Jesus. Somando todo o tempo que meu esqueleto já sacolejou em trinta e sete anos de idade, não alcanço seis dias.
Enquanto a simpática senhora - a dona, aliás - preenchia meu cadastro, fiz perguntas pertinentes. "Calço 38. Três oitão. Tem problema? Existe sapatilha do meu número?". Ela me olhou por cima dos óculos. "Bailarina não é gueixa. Existe. Mas para você, é 39. Usa-se sapatilha um número maior do que o sapato". Ou seja. Duas lanchas nos pés.
Anotei o endereço de uma loja de roupas para dança. Antes de ir embora, uma espiada na sala onde rolam as aulas. Hum, até que o uniforme não é tão rígido. Tem uma fulana lá com camiseta do Guns'n Roses. Well, se é assim, então vou usar as minhas do Mark Lanegan. Não. Pensando bem, melhor não. Não quero envergonhá-lo na frente dos outros. Não enquanto eu me mover com a graça e elegância de uma rã. Sendo principiante, preciso agir com modéstia até aflorar todo meu potencial. Já sei, a camiseta do Asobi Seksu. Nunca tirei do armário. Comprei em Londres, durante um show dos caras. Cinza, com uma borboleta rosa e o nome da banda estampadão na frente. Eles são americanos, a vocalista tem ascendência oriental. O que explica o nome da banda. O significado eu descobri depois da viagem. "Sexo Casual". Aí o impasse. Usar onde, vestimenta um tanto, digamos, assanhada? Na Liberdade, nem morta. No ballet dá. Só mulher. E a língua oficial é o portuncês. Português mais francês.
Na loja de roupas para danças, escolhi o que precisava. E o que não precisava. Quase encerrando a compra, vi lá, penduradinhas. Polainas. Polainas! Anos 80, Flashdance! What a feeling! Que menina não sonhou dançar igual à personagem da Jennifer Beals, polainas nas pernocas? No filme, Jennifer é uma metalúrgica, autodidata dançarina de boate, que tenta bolsa de estudos em uma tradicional e sisuda academia de ballet. O final é feliz. Ela faz o teste, se apresenta para a tradicional e sisuda banca examinadora e, com Irene Cara desafinando, dança um mix de ginástica olímpica/street dance tão parecido com ballet quanto forró, e ganha a vaga! "Por favor, vou levar também as polainas". A vendedora não entendeu. "Polai...? Ah. As perneiras. A curta ou a comprida?". O modelo comprido é de uma cafonice sem fim. O equivalente a uma bota de cano alto indo até a coxa. Aparece no filme. A curta é mais discreta, Mais ballet, sem dúvida. "A comprida".
Devidamente travestida, chegou o momento...a aula! Que emoção. "Você fica bonitinha nessa roupa". A dona da escola elogiando meu visual algodão-doce gigante. Que fofa. Comecei bem, com a sapatilha direita! Sou apresentada para o professor. Ele é muito bonzinho. Parece o vampiro Nosferatu. Mas muito bonzinho. "Já dançou antes?". "Não". "Nem pequenininha, tipo aos três anos?". Eu não me lembro de andar, aos três anos. "Bom, mas com certeza, dentro de você, em algum lugar, existe uma memória de dança". Sei não. Deixa buscar nos meus arquivos. Sim, tem. Uma imagem borrada aparece: pré-primário, festa junina, quadrilha. Pronto, sumiu. Agora só tem o breu.
Instruções para eu pegar rápido o jeito: prestar muita atenção no professor, observar as outras alunas, mais adiantadas. Não me preocupar com as palavras em francês. Aos poucos, vou me acostumar. Há uma sequência de passos. Cada passo tem um nome. Por exemplo, se você dobra uma das pernas e encosta o peito do pé no joelho, formando um 4, isso é um "passet". O professor dá as coordenadas para cada exercício, elaborando as sequências de passos.
"Essa é fácil: primeiro pela frente, depois com a perna saindo por trás: pliê-passê-pliê-degagê-pliê-cupê-passê-cambrê".
...
Quê?
Todo mundo obedece, repetindo os movimentos do professor. Direitinho. Até a moça que também começou hoje. Até a chilena, que mal entende português. E faz aula de óculos.
É bonito isso: a aula é cheia de música. Clássica, claro. Não tem piano ao vivo, mas o professor usa um disquinho gravado. Basicamente são duas as músicas usadas para os exercícios: em ritmo devagar, uma valsinha. Acelerado, um allegro. O allegro me entristece. Se já é punk coordenar os pés em câmera lenta, imagine só apertando a tecla fast forward. Se de fato existe alguma memória de dança dentro de mim, como crê o professor, ela com certeza não está armazenada nos pés. Eles sofrem total amnésia. Prova disso são as minhas tentativas fracassadas de acertar a diagonal. A sala de aula é um quadrado, certo? Na diagonal, as bailarinas se concentram em um dos cantos da classe. Atravessam a sala em diagonal, até o canto oposto, com saltinhos elegantes. No meu caso, parece mais que estou na praia, dando aquela corridinha em direção ao mar, enquanto a areia escaldante vai queimando a sola dos pés. Não é algo belo de se ver.
Bom, primeira aula, vai. Normal que eu levante a perna esquerda, enquanto os outros 99% da classe levantam a direita. Segunda aula, também perdoável essa pequena confusão entre leste-oeste. Não sou bússola. Terceira semana de ballet...é impressão minha ou o professor parece desanimado?
"Lu, pés na quinta posição, não na segunda!"
Quanta felicidade. Milagre. Não sou só eu que erro. Mas quem é Lu, aliás? Não tem nenhuma Lu na sala. Viviane do meu lado, Bruna lá na frente, a Jessica não veio...."Lu! Acorda!". O professor olhando...pra mim. Fazendo o que ninguém nunca fez: retalhando meu jamais-usado segundo nome e inventando um novo. Lu. Já não bastam todos os nomes afrescalhados que tenho que decorar. E agora aparece mais um. O meu.
"Lu, por acaso tem ouro no chão?". Como assim? "Então porque você olha para baixo?". Admirando as polainas, ué. "Levanta a cabeça, vai, estica, para cima!". Entendi. O ouro tá no teto.
Sempre fui uma estudante CDF. Isso a gente não perde. Então, por conta própria, estou fazendo lição de casa. Youtube tem pencas de vídeos-tutoriais sobre o básico do básico do ballet. Ajuda. Escovar os dentes com o pé apoiado na pia, também. Preciso melhorar minha elasticidade, urgente. Ballet é pura geometria. Seu corpo faz ângulos. No nível iniciante, espera-se que no mínimo sua abertura de pernas forme um ângulo reto. Seja para cima, para o lado, frente ou verso. Sempre um quarto de pizza. Minha abertura corresponde à fatia de uma pizza que foi compartilhada por doze pessoas. Fatia cortada para quem estava de regime. Superados os 90 graus, a angulação aumenta. 180. 300. 360 graus e parabéns: você já pode se considerar tão formosa quanto um grampo de cabelo. Tipo as extraterrestres na foto acima.
Vou completar um mês de aulas. Se estou melhorando? Bom, meu professor sabe a resposta. E como sempre, também o meu eu-interior. Ah, o eu-interior. Esse auto-oráculo tão temido. As pessoas tendem a tapar os ouvidos para os seus eu-interiores. Perguntar a terceiros quando as respostas já são intrinsicamente conhecidas. "Engordei?". "Ele tá a fim?". Sua melhor amiga: "Não. Sim". O eu-interior: "Sim. Não". Não fugi da enquadrada do meu eu-interior: "E aí, progredindo?". Olha, para avançar, muitas vezes é preciso primeiro retroceder. É uma tática. "Tá....mas como você vai retroceder, se nunca antes avançou?". E quem disse que eu não avancei? "Ah, então avançou?". Não. Mas já falei, é uma estratégia. Napoleão pensava assim. "E perdeu a guerra". Foi o frio, né. Ao qual estou imune. Tenho um collant de mangas compridas. Nunca vou dançar na neve. E, infelizmente, muito menos em solo russo.
É meu filho, dançar não é mole, não. Ballet é a arte do encontro da força com a suavidade. Olhe de novo a foto do casal Maria e George. Repare. Ela, a força, suando para manter a perna lindamente esticada. Ele, folgadão, com a bunda, digo, o derrière, suavemente esparramado na cadeira. Tem que ser muito macho para ser bailarina.
Mas não descansarei! Com empenho, disciplina militar, concentração e reza braba quebrarei a maldição! Não mais serei uma sapa dura, e sim delgada princesa. Che estava errado! Sem essa de hay que endurecer, pero sin perder la ternura! Hei de amolecer! Ganharei a ternura! E tenho dito!
Tenho tempo. Sessenta anos. "O Lago dos Cisnes", versão geriátrica. Eu ainda chego lá. Mas sem stress. Um dia de cada vez. Um pliê de cada vez. Por enquanto, sem crise. Eu me contento dançando "A Poça dos Marrecos".
Gostei desse lance vem-que-tem-jeito. Me senti uma cafeteira quebrada indo para o conserto. Então fui.
Lugar bacana, em um predinho. Corredores decorados com posters de dança, fotos, desenhos infantis nas paredes. Cool. Dois lances de escada. Cansada só de ir até a secretaria. "Oi, eu falei ontem com a senhora, pelo telefone". "Ah, sim. Iniciante, não é?". "Há esperanças para mim?". "Sim, você pega rápido o jeito". "A senhora dança?". "Dançava". "Pegou rápido o jeito?". "Fui balarina por sessenta anos". Jesus. Somando todo o tempo que meu esqueleto já sacolejou em trinta e sete anos de idade, não alcanço seis dias.
Enquanto a simpática senhora - a dona, aliás - preenchia meu cadastro, fiz perguntas pertinentes. "Calço 38. Três oitão. Tem problema? Existe sapatilha do meu número?". Ela me olhou por cima dos óculos. "Bailarina não é gueixa. Existe. Mas para você, é 39. Usa-se sapatilha um número maior do que o sapato". Ou seja. Duas lanchas nos pés.
Anotei o endereço de uma loja de roupas para dança. Antes de ir embora, uma espiada na sala onde rolam as aulas. Hum, até que o uniforme não é tão rígido. Tem uma fulana lá com camiseta do Guns'n Roses. Well, se é assim, então vou usar as minhas do Mark Lanegan. Não. Pensando bem, melhor não. Não quero envergonhá-lo na frente dos outros. Não enquanto eu me mover com a graça e elegância de uma rã. Sendo principiante, preciso agir com modéstia até aflorar todo meu potencial. Já sei, a camiseta do Asobi Seksu. Nunca tirei do armário. Comprei em Londres, durante um show dos caras. Cinza, com uma borboleta rosa e o nome da banda estampadão na frente. Eles são americanos, a vocalista tem ascendência oriental. O que explica o nome da banda. O significado eu descobri depois da viagem. "Sexo Casual". Aí o impasse. Usar onde, vestimenta um tanto, digamos, assanhada? Na Liberdade, nem morta. No ballet dá. Só mulher. E a língua oficial é o portuncês. Português mais francês.
Na loja de roupas para danças, escolhi o que precisava. E o que não precisava. Quase encerrando a compra, vi lá, penduradinhas. Polainas. Polainas! Anos 80, Flashdance! What a feeling! Que menina não sonhou dançar igual à personagem da Jennifer Beals, polainas nas pernocas? No filme, Jennifer é uma metalúrgica, autodidata dançarina de boate, que tenta bolsa de estudos em uma tradicional e sisuda academia de ballet. O final é feliz. Ela faz o teste, se apresenta para a tradicional e sisuda banca examinadora e, com Irene Cara desafinando, dança um mix de ginástica olímpica/street dance tão parecido com ballet quanto forró, e ganha a vaga! "Por favor, vou levar também as polainas". A vendedora não entendeu. "Polai...? Ah. As perneiras. A curta ou a comprida?". O modelo comprido é de uma cafonice sem fim. O equivalente a uma bota de cano alto indo até a coxa. Aparece no filme. A curta é mais discreta, Mais ballet, sem dúvida. "A comprida".
Devidamente travestida, chegou o momento...a aula! Que emoção. "Você fica bonitinha nessa roupa". A dona da escola elogiando meu visual algodão-doce gigante. Que fofa. Comecei bem, com a sapatilha direita! Sou apresentada para o professor. Ele é muito bonzinho. Parece o vampiro Nosferatu. Mas muito bonzinho. "Já dançou antes?". "Não". "Nem pequenininha, tipo aos três anos?". Eu não me lembro de andar, aos três anos. "Bom, mas com certeza, dentro de você, em algum lugar, existe uma memória de dança". Sei não. Deixa buscar nos meus arquivos. Sim, tem. Uma imagem borrada aparece: pré-primário, festa junina, quadrilha. Pronto, sumiu. Agora só tem o breu.
Instruções para eu pegar rápido o jeito: prestar muita atenção no professor, observar as outras alunas, mais adiantadas. Não me preocupar com as palavras em francês. Aos poucos, vou me acostumar. Há uma sequência de passos. Cada passo tem um nome. Por exemplo, se você dobra uma das pernas e encosta o peito do pé no joelho, formando um 4, isso é um "passet". O professor dá as coordenadas para cada exercício, elaborando as sequências de passos.
"Essa é fácil: primeiro pela frente, depois com a perna saindo por trás: pliê-passê-pliê-degagê-pliê-cupê-passê-cambrê".
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Quê?
Todo mundo obedece, repetindo os movimentos do professor. Direitinho. Até a moça que também começou hoje. Até a chilena, que mal entende português. E faz aula de óculos.
É bonito isso: a aula é cheia de música. Clássica, claro. Não tem piano ao vivo, mas o professor usa um disquinho gravado. Basicamente são duas as músicas usadas para os exercícios: em ritmo devagar, uma valsinha. Acelerado, um allegro. O allegro me entristece. Se já é punk coordenar os pés em câmera lenta, imagine só apertando a tecla fast forward. Se de fato existe alguma memória de dança dentro de mim, como crê o professor, ela com certeza não está armazenada nos pés. Eles sofrem total amnésia. Prova disso são as minhas tentativas fracassadas de acertar a diagonal. A sala de aula é um quadrado, certo? Na diagonal, as bailarinas se concentram em um dos cantos da classe. Atravessam a sala em diagonal, até o canto oposto, com saltinhos elegantes. No meu caso, parece mais que estou na praia, dando aquela corridinha em direção ao mar, enquanto a areia escaldante vai queimando a sola dos pés. Não é algo belo de se ver.
Bom, primeira aula, vai. Normal que eu levante a perna esquerda, enquanto os outros 99% da classe levantam a direita. Segunda aula, também perdoável essa pequena confusão entre leste-oeste. Não sou bússola. Terceira semana de ballet...é impressão minha ou o professor parece desanimado?
"Lu, pés na quinta posição, não na segunda!"
Quanta felicidade. Milagre. Não sou só eu que erro. Mas quem é Lu, aliás? Não tem nenhuma Lu na sala. Viviane do meu lado, Bruna lá na frente, a Jessica não veio...."Lu! Acorda!". O professor olhando...pra mim. Fazendo o que ninguém nunca fez: retalhando meu jamais-usado segundo nome e inventando um novo. Lu. Já não bastam todos os nomes afrescalhados que tenho que decorar. E agora aparece mais um. O meu.
"Lu, por acaso tem ouro no chão?". Como assim? "Então porque você olha para baixo?". Admirando as polainas, ué. "Levanta a cabeça, vai, estica, para cima!". Entendi. O ouro tá no teto.
Sempre fui uma estudante CDF. Isso a gente não perde. Então, por conta própria, estou fazendo lição de casa. Youtube tem pencas de vídeos-tutoriais sobre o básico do básico do ballet. Ajuda. Escovar os dentes com o pé apoiado na pia, também. Preciso melhorar minha elasticidade, urgente. Ballet é pura geometria. Seu corpo faz ângulos. No nível iniciante, espera-se que no mínimo sua abertura de pernas forme um ângulo reto. Seja para cima, para o lado, frente ou verso. Sempre um quarto de pizza. Minha abertura corresponde à fatia de uma pizza que foi compartilhada por doze pessoas. Fatia cortada para quem estava de regime. Superados os 90 graus, a angulação aumenta. 180. 300. 360 graus e parabéns: você já pode se considerar tão formosa quanto um grampo de cabelo. Tipo as extraterrestres na foto acima.
Vou completar um mês de aulas. Se estou melhorando? Bom, meu professor sabe a resposta. E como sempre, também o meu eu-interior. Ah, o eu-interior. Esse auto-oráculo tão temido. As pessoas tendem a tapar os ouvidos para os seus eu-interiores. Perguntar a terceiros quando as respostas já são intrinsicamente conhecidas. "Engordei?". "Ele tá a fim?". Sua melhor amiga: "Não. Sim". O eu-interior: "Sim. Não". Não fugi da enquadrada do meu eu-interior: "E aí, progredindo?". Olha, para avançar, muitas vezes é preciso primeiro retroceder. É uma tática. "Tá....mas como você vai retroceder, se nunca antes avançou?". E quem disse que eu não avancei? "Ah, então avançou?". Não. Mas já falei, é uma estratégia. Napoleão pensava assim. "E perdeu a guerra". Foi o frio, né. Ao qual estou imune. Tenho um collant de mangas compridas. Nunca vou dançar na neve. E, infelizmente, muito menos em solo russo.
É meu filho, dançar não é mole, não. Ballet é a arte do encontro da força com a suavidade. Olhe de novo a foto do casal Maria e George. Repare. Ela, a força, suando para manter a perna lindamente esticada. Ele, folgadão, com a bunda, digo, o derrière, suavemente esparramado na cadeira. Tem que ser muito macho para ser bailarina.
Mas não descansarei! Com empenho, disciplina militar, concentração e reza braba quebrarei a maldição! Não mais serei uma sapa dura, e sim delgada princesa. Che estava errado! Sem essa de hay que endurecer, pero sin perder la ternura! Hei de amolecer! Ganharei a ternura! E tenho dito!
Tenho tempo. Sessenta anos. "O Lago dos Cisnes", versão geriátrica. Eu ainda chego lá. Mas sem stress. Um dia de cada vez. Um pliê de cada vez. Por enquanto, sem crise. Eu me contento dançando "A Poça dos Marrecos".