PJ Harvey, Trent Reznor, Bobby Gillespie. Parabéns, vocês conseguiram. Aos 33 anos, oficialmente proclamo: estou ficando surda. E não é porque, no meu carro, o volume 9 do som parece muito débil para amplificar Killing Joke. Também não é porque, no Fórum onde trabalho, o juiz já responde com irritação (né, Brenno?) quando faço o mesmo pedido pela centésima vez: "Quê? Não ouvi nada. Dá pra repetir?". É porque...porque...hamm....
comecei...a ter....
alucinações musicais. Prontofalei.
Aconteceu no início do mês, depois que eu baixei "
The Prodigal Sun", da banda texana The Black Angels. Bateria marcial, guitarra compassada, quase uma marcha. Ou seja, a típica música que age como detonadora da tecla "repeat". De novo. E de novo. Só mais uma vez, vai. Juro que é a última.
E foi assim - após uma seqüência de no mínimo vinte audições - que meu cérebro decorou "The Prodigal Sun". O problema é que decorou...com louvor. Primeiro sábado de outubro, de manhã. Chovia quando eu tentava descer a rua na qual fica o prédio da minha professora de inglês. Sem guarda-chuva, impedida de correr por culpa da bota de salto fino. Um camburão (!) preto passou por mim, parou no sinal vermelho. Som jorrando alto pelas janelas abertas. Era a introdução de "The Prodigal Sun", que parava antes da entrada do vocal e se reiniciava continuamente! Esqueci que meu vestido estava encharcado, que o cabelo pingava. Fiquei lá, pernas tortas na calçada, petrificada, boca aberta. Carro de playboy, na Vila Madalena, tocando a mega-obscura Black Angels é fato tão absolutamente impossível quanto, digamos, Sarah Palin cantando "Máquina de Ricota", música do Bonde do Rolê que é uma verdadeira ode à finesse. Não aconteceu de verdade. Foi uma miragem sonora. Foi meu cérebro.
Tenho certeza. E fui procurar embasamento científico para explicar minha tamanha...aimeuDeus...confusão mental. Achei. Em um livro que eu já tinha em casa, na fila para a leitura. "Alucinações Musicais - Relatos Sobre a Música e o Cérebro". E foi aí que concluí que estou ficando surda. Captou? Não? Então, com a palavra...Oliver Sacks, o simpático neurologista e psiquiatra (ainda bem que minha mãe não lê esse blog), autor do livro, que tratou uma velhinha surda cuja cabeça não parava de "tocar" temas musicais da "Noviça Rebelde" (coitada): "expliquei que suas alucinações não eram psicóticas, mas neurológicas, chamadas alucinações 'de liberação' (
'release' hallucinations). Por causa da surdez, a parte auditiva do cérebro, privada da usual entrada de dados externos, começara a gerar uma atividade espontânea própria, que assumia a forma de alucinações musicais, sobretudo memórias musicais de sua juventude. O cérebro precisava manter-se incessantemente ativo e, se não obtivesse sua estimulação usual, fosse ela auditiva ou visual, criava sua própria estimulação na forma de alucinações". As canções entoadas por Julie Andrews foram para a velhinha, então, aquilo que "The Prodigal Sun" foi para mim:
earworms, agentes musicais cognitivamente infecciosos. Em bom português: melodias que grudam no cérebro como sanguessugas. E que se repetem
over and over and over.... Impressionante, não? E Dr. Sacks não se limita ao caso da idosa alucinógena: cada capítulo do livro é dedicado a um distúrbio neurológico ou perceptivo ligado à música. Ele narra, por exemplo, a história do cirurgião ortopédico que, durante uma tempestade, foi atingido por um raio (!). O homem sofreu uma parada cardíaca. Foi reanimado e, dias mais tarde, retomou suas atividades normais. Com uma diferença. O médico, que nunca havia dado muita bola para música, inexplicavelmente se viciou em música de piano. Comprou quilos de discos, partituras, descolou um piano. Quarentão, aprendeu sozinho a tocar e a compor! Passou a dedicar seu tempo livre ao instrumento, divorciou-se! Até finalmente se apresentar em concertos, ser aclamado e invejado! Uau! Depois dessa, fui até reler entrevistas antigas do Mark Lanegan, tentando descobrir se a causa de seu talento também tem a ver com uma descarga elétrica que sacudiu os neurônios. Mas não. Quando jovenzinho, ele somente foi atropelado por um trator que partiu suas pernas.
O caso do "Médico e o Raio" ilustra uma ocorrência de musicofilia provocada por lesão cerebral (o raio afetando o cérebro) ou por falta de oxigênio no cérebro (em decorrência da parada cardíaca temporária). Por outro lado, em seu livro o Dr. Sacks também relata casos de incidência de...musicofobia! Está lá na página 34: "o caso mais impressionante foi o de um eminente crítico musical do século XIX, Nikonov, que sofreu seu primeiro ataque durante a apresentação da ópera O profeta, de Meyerbeer. Dali por diante ele foi se tornando cada vez mais sensível à música, até que por fim quase toda música, por suave que fosse, causava-lhe convulsões. (...) Nikonov, profundo conhecedor e apaixonado por música, acabou sendo forçado a deixar sua profissão e a evitar qualquer contato com música." Que dó. Bom, pelo menos o pobre Nikonov não viveu o bastante a ponto de atravessar os anos e inadvertidamente chegar a ouvir qualquer disco do Ed Motta. Morreria fulminado no ato, judiação.
Mas nem sempre música sofrível é responsável por epilepsia musicogênica. Oliver Sacks conta o drama do jovem G.G., vítima de ataques epilépticos desencadeados por....baladas (!!): "ele diz que o estilo mais provocativo é o 'romântico', especialmente as canções de Frank Sinatra ('Ele me emociona'). Afirma também que a música tem de ser 'repleta de emoções, associações, nostalgia' - quase sempre, músicas que ele conheceu na infância ou adolescência. Para provocar um ataque, a música não precisa ser alta; se for suave pode ter os mesmos efeitos". Meu Deus. Para G.G., qualquer canção entoada por Thom Yorke (cujo cérebro derrete na foto acima) agiria como cianureto em forma de ondas sonoras. E nunca, jamais, em hipótese alguma...G.G. poderia ir ao show do The National, no próximo sábado (levante a mão quem vai!)! Porque os primeiros acordes de "
Fake Empire" ou o verso mais lindo da galáxia, na voz de Matt Berninger cantando a dolorosa "Secret Meeting", induziriam uma terrível crise de musicolepsia: "And so and now/I'm sorry I missed you/I had a secret meeting in the basement of my brain".
Mas voltemos à velhinha assombrada pelos trinados de Julie Andrews vibrando o gogó nas pradarias austríacas. Dr. Sacks não mentiu para a atormentada anciã: o distúrbio não tinha cura. A esperta senhora não se abateu: já que não poderia matar o earworm do Mal....cultivou earworms do Bem. Conta o psiquiatra: "nesse meio-tempo, a sra. C. tentara ampliar seu repertório de alucinações, supondo que, se não fizesse um esforço consciente, ele acabaria por reduzir-se a três ou quatro músicas repetidas indefinidamente (...). E, embora a sra. C. não fosse capaz de fazer a música parar, às vezes conseguia, com força de vontade, trocá-la". Ah, a sabedoria dos mais velhos...
Minha surdez progride. Já sofro alucinações musicais. Oliver Sacks não vê chances de recuperação. A velhinha teve uma ótima idéia.
"The Prodigal Sun", do Black Angels. "Disintegration", do Cure. "Natural's Not In It", do Gang of Four. "More or Less", do Screaming Trees. "Transmission", do Joy Division"....
Despeço-me. Hora de baixar alguns earworms. Para salvar no meu iPod neurológico...