"When the willow bends/ towards the end of day/ And twilight falls again/ To the funny sound that a blackbird makes/ Twilight falls again/ As no good reason remains, I'll do the same/ Thinking of you/ One day a ship comes in, one day a ship comes in/ But I can't say how or when/ But I know somewhere the ship comes in every day" ("One Hundred Days", Mark Lanegan).
"Atravessa esta paisagem o meu sonho dum porto infinito/ E a cor das flores é transparente de as velas de grandes navios/ Que largam do cais arrastando nas águas por sombra/ Os vultos ao sol daquelas árvores antigas...
O porto que sonho é sombrio e pálido/ E esta paisagem é cheia de sol deste lado.../ Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio/ E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol..." ("Chuva Oblíqua", Fernando Pessoa).
O porto que sonho é sombrio e pálido/ E esta paisagem é cheia de sol deste lado.../ Mas no meu espírito o sol deste dia é porto sombrio/ E os navios que saem do porto são estas árvores ao sol..." ("Chuva Oblíqua", Fernando Pessoa).
Eu tinha um plano. Traçado com meses de antecedência. As escolhas não poderiam ser erradas. Lugar: Lisboa. Bar pequeno, palco e platéia nivelados. Ingresso comprado antes da passagem aérea. Encomenda feita pela net. Hotel reservado, OK. Início de setembro. Vambora. Vai dar certo. Será?
Hoje quero preparar-me,/ Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte.../Ele que é decisivo./ Tenho já o plano traçado (...)/ Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,/ Que depois de amanhã é que está bem o espetáculo...("Adiamento", Fernando Pessoa).
Noite fresca de verão em Lisboa, poucas pessoas no Santiago Alquimista quando chego, adiantada. Duas pessoas na frente do palco. Beleza. Garanto o meu lugar, ao lado de uma menina que, na penumbra, tenta ler um livro de dimensões enciclopédicas. Aos poucos, a pista vai enchendo. Gente normal. Nada que lembre o povo indie paulistano, padronizado e provinciano. Bom...gente..quase normal. Um senhor sexagenário, óculos, camisa pólo esticada sobre a barriga e arrumada dentro da calça, pede uma cerveja no bar. Para seu acompanhante - cinqüenta anos (!) mais novo - pega uma Coca-Cola. O menino parece empolgado, ansioso. O avô, meio constrangido.
Ao ver o neto a brincar,/ Diz o avô, entristecido: "Ah, quem me dera voltar/ A estar assim entretido" ("O Avô e O Neto", Fernando Pessoa).
Minutos antes do show, Greg Dulli - metade da dupla Gutter Twins - atravessa a pista e desaparece atrás das cortinas do palco. Não vejo a outra metade. Talvez esteja no backstage, tratando a voz com nicotina. Não há outro jeito senão protelar a execução do plano.
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos./ Sigo o fumo como a uma rota própria, (...)/ Depois deito-me para trás na cadeira/ E continuo fumando./ Enquanto o destino mo conceder, continuarei fumando. ("Tabacaria", Álvaro de Campos-Fernando Pessoa)
E então começa. Mark Lanegan surge no palco. Olhando para baixo. Anda até o microfone, não olha para o menino e seu avô na primeira fila, não vê ninguém. Enquanto o despachado Greg Dulli cumprimenta os fãs e brinca com a platéia, Lanegan, sério e calado, segura o suporte do microfone, fecha os olhos, enruga o rosto incomodado com os flashes fotográficos. Canta alheio ao que ocorre no local, trancado em um mundinho particular no qual visitantes não são bem-vindos.
É, não vai ser fácil.
Não me peguem no braço!/ Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho./ Já disse que sou só sozinho! Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!/ (...) Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo.../E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho! ("Lisbon Revisited (1923)", Álvaro de Campos-Fernando Pessoa).
O show avança. Intervalo antes do bis. Acho que não vai funcionar. Terminado o show, ele vai evaporar. Introvertido demais para socializar com os fãs. Os dois voltam para o palco, primeiros acordes da música. Então vai ter que ser agora. Distância de alguns passos. O segurança está do outro lado. Dá tempo. Mas....de olhos fechados...como ele vai me ver? Bom....pensando bem...ele não precisa me ver. Basta sentir...
Foi um momento/ O em que pousaste/ Sobre o meu braço,/ Num movimento/ Mais de cansaço/ Que pensamento,/ A tua mão/ E a retiraste./ Senti ou não? ("Foi um Momento", Fernando Pessoa).
Ele abre os olhos apressado, despertado pelo cutucão. Não entende o que eu exatamente faço na frente dele, até ver meu braço esticado, apontando um livro na sua direção. Compreende então, e aceita o presente. De volta ao meu lugar na platéia, vejo o esforço que ele faz para encontrar um feixe de luz que permita a leitura da capa. A expressão de surpresa, quando descobre autor e conteúdo, chega a ser engraçada. E duvidosa. Putz, devo ter exagerado. Ele não gostou. Espera....está olhando fixamente para o livro. E...sorrindo! Ele sabe sorrir! Olha para mim. "Thank you" é o agradecimento que eu vejo mas não ouço, abafado por guitarra e bateria. Ah, ele gostou! Alívio!
Greg Dulli se aproxima, coloca uma das mãos sobre o ombro dele. Aponta para mim com a cabeça. Impossível escutar o que diz. Mas Mark Lanegan ri, olhos baixos, envergonhado. Encolhe os ombros e abre os braços, como quem diz: "pois é, eu que ganhei. Sinto muito se ela não te deu nada". Meninos....todos iguais mesmo.
Fim da apresentação. Greg Dulli se encarrega das despedidas. Lanegan não cumprimenta ou agradece os presentes. Limita-se a apanhar o livro que ele havia acomodado ao seu lado. Caminha em direção aos fundos do palco. Antes de ultrapassar a cortina, me procura com os olhos. Quando acha, acena com o livro, agradecendo mais uma vez. Um fofo.
As portuguesinhas que assistiam ao show, perto de mim, não me deixam ir embora sem explicações: "O que você fez pra ele ter ficado assim feliz!?"
Meia-noite e meia. Tomo uma Imperial enquanto vejo o roadie, sósia do ator Alan Rickman, enrolando cabos e guardando os instrumentos. Depois, hora de ir embora. Feliz da vida.
Desço acelerada a rua do Limoeiro, pronta para pegar o último metrô na estação Baixo-Chiado. Sopra uma brisa na noite quente, Lisboa está linda como nunca. E eu não consigo parar de sorrir...
As minhas mãos são os passos daquela rapariga que abandona a feira,/ Sozinha e contente como o dia de hoje...("Chuva Oblíqua", Fernando Pessoa).
Assim a brisa/ Nos ramos diz/ Sem o saber/ Uma imprecisa coisa feliz ("Foi um Momento", Fernando Pessoa).
Que vida engraçada. Mark Lanegan é meu ídolo. Não tenho fotos com ele, não tenho seu autógrafo. Ele que tem o meu. Na forma de dedicatória escrita na primeira página de um livro de poemas. Fernando Pessoa traduzido para o inglês. Na minha estante, em casa, empilham-se os CDs do meu ídolo. Na estante dele, um livro meu. E na minha memória, um sorriso doce e raro. Que partiu de alguém que um dia decidiu que a vida não oferece muitas boas razões para sorrir. Uma honra que, no meu caso, tenha sido aberta uma exceção.
Valeu a pena. E a alma não foi pequena.