Tuesday, August 16, 2011

Husbands-in-law




Husbands-in-law. Maridos por afinidade. Foi assim que George Harrison e Eric Clapton batizaram seu parentesco. Nome que teria sido de grande utilidade se inventado décadas antes. Porque Friedrich Nietzsche saberia então como se referir a Paul Rée. O outro marido de sua mulher.


Pena (ou sorte) que o célebre pensador não conheceu Pattie Boyd. A musa inspiradora do vocábulo. E de duas das mais famosas músicas da História.


A inglesinha Pattie era modelo da Vogue. Em A Hard Day's Night, primeiro filme dos Beatles, fez uma pontinha como fã stalker. Ironia. Porque em 1964, explosão da Beatlemania, ela nem dava bola para a banda. As inconformadas amigas não queriam acreditar: foi pedida em casamento e disse não. Para George Harrison! No dia em que ele a conheceu! E mais espantoso: o guitarrista ainda estava disponível quando Pattie cedeu e aceitou novo convite, para um encontro. Casaram-se em 1966. A confusão iria começar uns anos depois, com a chegada de outro músico.


Não foi fácil para Eric Clapton. Roubar a garota do amigo - e um amigo beatle - exigiu algumas manobras. Nem todas muito honrosas. Tipo namorar a irmã de Pattie, para ter proximidade com a amada. Compor Layla para convencê-la a ficar com ele. Até chutar de vez o pau da barraca, abordar o casal em uma festa e comunicar George que sim, estava apaixonado por uma mulher. Que, infelizmente, era a dele.


Tamanha insistência não foi em vão. Anos mais tarde Pattie e Eric se casaram! Ele esperou. E alcançou.


Friedrich Nietzsche não precisou esperar. Lou von Salomé tomou a iniciativa no dia em que o conheceu. Isso, em 1882. É que Nietzsche mandou bem no xaveco: "De que estrela caímos, para nos encontrarmos aqui?" A reação de Lou veio na forma de uma proposta incomum.


Agora imagina só a cena. Você, sério e respeitado filósofo alemão. Batendo nos quarenta anos. Fechadão, bigodudo. Só sua mãe te acha bonito. Um perfeito nerd do século XIX. Um belo dia, a sorte lhe sorri. Uma menina russa, lindalinda, inteligente, quer saber. Você viveria com ela? Nietzsche não pensou duas vezes. Siiiiimm! Você dedicaria seu tempo a ela, que o considera um gênio, ensinando e discutindo seu hobby predileto? Filosofia!? Siiiimm! Você viajaria com ela pela Europa, para aperfeiçoar seus conhecimentos? Siiimm! Então, fechado. Só um detalhe: no casamento não vai rolar aquela atividade suja, bestial e profana chamada sexo. Tudo bem pra você? Sii......hã? Espera. Acho que ouvi mal. Dá para repetir? Pois não. Casamento casto, querido. Para quê comunhão de corpos, se a das mentes já é prodigiosa? Mas....Sem "mas". Ah, já ia me esquecendo: nas viagens, mamãe vai junto.
Nietzsche, apaixonado, disse sim a tudo.


E não só ele. Lou queria um casamento informal. A três. Só que, para o azar de Nietzsche, a terceira pessoa não seria outra russa maravilhosa, talvez com a cabeça um pouco mais aberta - e o corpo bem menos fechado. Paul Rée foi escolhido para segundo marido. Também já havia concordado com os termos de Lou. Então, nada mais bonito do que selar união tão produtiva com uma....foto! Essa. Repare em Paul Rée e sua expressão resignada de pois é, tem jeito?. Nietzsche fitando a paisagem, com cara de paisagem. Os dois na frente da carroça, como mulas. Lou sentada, segurando o chicotinho. Imagem autoexplicativa. Quando Rée recebeu a fotografia, comentou com Lou: "Nietzsche está soberbo; você e eu, monstruosos, podemos discutir sobre quem deveria ganhar o prêmio de feiúra". Que acinte. Pena que, por uma questão cronológica, tenha sido impossível para Lou replicar: "Pelo menos eu não sou a cara do Phil Collins!"


Naquele ano de 1882, Nietzsche foi todo amor. Feliz com as atenções de Lou, ansioso na ausência dela, inseguro e emotivo. Adotou como lema a máxima filosófica "se a vida lhe der um limão, faça uma limonada". Tentou ignorar Rée, expôs seus sentimentos a Lou: "Tenho pensado muito em você, e dividido com você, em pensamento, muito do que é elevado, interessante e alegre (...). Se você soubesse quão novo e estranho isso parece para um velho eremita como eu! Quantas vezes isso tem me feito rir de mim mesmo!". Nietzsche, como músico, era ótimo filósofo. Mas a falta de jeito não o acanhou. Quando Lou escreveu o poema "Hino à Vida", o pensador logo compôs um fundo musical para acompanhar os versos "se você não tem mais felicidade para dar/dê-me a sua dor". Funny. Eric Clapton não conseguiu ser assim tão conformado. Pegou o limão, fez uma caipirinha, encheu a cara, mergulhou no vício. "Seu silêncio quer dizer 'vai embora'?" O bilhetinho secreto escrito para a então casada Pattie Boyd transparecia a angústia do moço.


Só que, no futuro, a chatice e insistência de Clapton ainda iriam recompensá-lo. Enquanto isso, lá em 1882, Lou recompensava assim o marido, ao comentar com a cunhada: "Posso passar uma noite inteira em um quarto com Nietzsche, sem sentir a mais leve tentação de pecar". Elisabeth, que não suportava Lou, indignou-se. E tomou a mesma atitude que tomaria uma mulher sensata, moderna e evoluída do século LXIX. Foi correndo contar para o irmão. E nem assim adiantou. Ele ficou meio magoado, óbvio. Mas não desistiu de Lou.


Lógico, não muito tempo depois, quem desistiu foi ela. Causa: Nietzsche estava sendo desleal com Paul Rée. Falava mal do filósofo, tentando converter Lou à monogamia (de preferência, impura). A maledicência foi também a estratégia que Eric Clapton escolheu para diminuir George Harrison diante dos olhos de Pattie. Ou melhor, ouvidos. Na letra de Layla (música que na verdade se refere a Pattie), vem lá o cutucão: "I tried give you consolation/when your old man had let you down". George vivia mal humorado devido ao uso de cocaína. O roto falando do rasgado.


Mas Lou, ao contrário de Pattie, não deixou barato para o difamador. Afastou-se de Nietzsche. Que, aflito, mandou para ela um bilhete à moda claptoniana: "De tempos em tempos nós vamos nos ver de novo, não vamos? Não se esqueça de que, deste ano em diante eu me tornei subitamente pobre de amor e consequentemente muito necessitado de amor". Não comoveu. Foi quando, de fato, Nietzsche chorou. E resolveu assim se lamentar com, justo quem, Paul Rée: "Gostaria de apagar a memória deste doloroso ano por inteiro - não porque ele me ofende, mas por causa da Lou em mim".


Bom, e já que Nietzsche já não tinha mais felicidade para dar, deu a Lou a sua dor. Junto com rancor, ressentimento, orgulho ferido. Chamou a russa de "fera predadora que se faz passar por animal doméstico", "uma monstruosidade, um cérebro sem alma", "essa macaca seca, suja fedorenta, com seus seios falsos". Que coisa. Passou dos limites, concorda? O que seriam seios falsos, no século XIX A.S. (antes do silicone)? Limões? E como Nietzsche sabia que não eram originais de fábrica? Espiou trocas de roupa pelo buraco da fechadura? Viu sutiãs com enchimento pendurados no varal? Será que Lou revidou tamanha ofensa à sua anatomia? "Se liga! O despeitado aqui é você!" seria uma boa resposta.


Seja por excesso, ou por falta, não há dúvidas de que a paixão inspira. Não foi só Eric Clapton que escreveu Layla para sua musa Pattie. Um pouco antes, George Harrison já havia composto Something, a segunda canção mais regravada de todos os tempos, homenageando a mesma garota. Nietzsche tentou se curar investindo no trabalho: tomou o pé de Lou e seis meses depois já tinha redigido metade de Assim Falou Zaratustra, obra fundamental da filosofia. Além de meter o pau no falso moralismo cristão (por que será?), a dor-de-cotovelo nietzschiana ressoa no livro, que conta histórias fictícias sobre as andanças e pregações do profeta persa Zaratustra, fundador do zoroastrismo. Nietzsche defende a solidão e espalha pela obra alertas contra o ciúme, a necessidade da autossuperação como anestésico. E propaga o ideal de super homem a ser atingido, um ser capaz de abstrair o sofrimento que aflige o homem comum. Ou seja, ao invés de comprar e ler, Nietzsche foi menos prático: escreveu seu próprio livro de autoajuda. E colocou umas frases ferinas na boca do finadíssimo profeta, espetando Lou. Pois é, assim falou Zaratustra: "A Mulher não é ainda capaz de amizade. As mulheres ainda são gatas e aves, ou, na melhor das hipóteses, vacas". "Vai ver mulheres? Não esqueça o chicote!"


E Paul Rée? Se deu bem, depois que metade de seu casamento informal dissolveu-se pelo "divórcio"? Bom, em 1886 Lou se casou. Para valer. Com outro. Friedrich Carl Andreas, um linguista atarracado e barbudão. Parecido com Eric Clapton. Não?


Bom, matrimônio para valer no papel. Não nos lençóis. Só que Lou não teve tempo de tranquilizar Rée com a garantia de que o sistema continuava o mesmo da época de Nietzsche. O filósofo se despediu por bilhete: "Tenha piedade - não procure por mim".


Ao contrário de Lou, foi Pattie Boyd que botou pontos finais em suas duas uniões. George Harrison dançou não exclusivamente por causa de Eric Clapton, mas porque pulou a cerca. Com a mulher de Ronnie Wood, dos Rolling Stones (e os traídos deram o troco, juntos), e com a mulher do Ringo! Eric Clapton tomou um pé de Pattie depois que engravidou uma italiana.


Após a partida de Paul Rée, Lou sentiu-se incompleta. Casada-solteira não era seu ideal de estado civil. Ela queria ser casada-casada. Nova oportunidade surgiu quando Lou, aos trinta e seis anos, conheceu o poeta Rainer Maria Rilke, de vinte e dois. Rilke era fã de Nietzsche e logo caiu de amores pela ex do seu ídolo. Problema solucionado: Rilke tomaria o posto vago por Rée. O moço se mudou para a vizinhança de Lou e Andreas, e os três iniciaram o novo relacionamento. Lou fez uma pequena mudança nas regras: relação espiritual e platônica, só com um dos maridos. O fato de Rilke ser loiro, olhos azuis faiscando no belo rosto jovem, certamente não pesou quando Lou decidiu que a ele caberiam os assuntos mundanos. Foi mera coincidência.


Lou morreu aos setenta e cinco anos. Antes disso, ainda teve tempo de fazer com que Freud se encantasse por ela. Não era fraca, não. Nem um câncer de mama a abateu. Operada, ela declarou que Nietzsche não estivera totalmente errado. A partir de então, seu seio seria mesmo falso.


Pattie continua viva. Fotógrafa, briga com uma editora pelos direitos autorais da sua autobiografia, onde não faltam histórias de amores bem e mal resolvidos. Afinal, são justamente esses deliciosos, divertidos, tocantes e trágicos episódios que empurram a humanidade, não? Que igualam e aproximam homens e mulheres de variadas épocas, culturas, idades, profissões. Lou, Clapton, Nietzsche, George, Rée, Pattie, Rilke. Todos perceberam que o amor nunca é uma aposta segura. Exige concessões. Acomodações e adaptações. E, quando acontece, pode ter um formato um tanto diferente do imaginado e desejado. À maneira de cada um, todos aprenderam que amar, ou ser amado, é um ato de coragem. Arriscar o coração é farejar uma chance de felicidade. E, sem pensar demais, pegar - ou largar.


Bom, quase todos.


Nietzsche foi exceção.


O único que não pegou.


E foi largado.




(P.S. O imbroglio de Lou e seus homens eu conheci graças a um capítulo do "Livro das Musas", da Francine Prose. Pattie e seus guitarristas também são um capítulo, parte do bacaníssimo "The Girl in the Song", de Michael Heatley e Frank Hopkinson. Os dois livros valem muito a pena).

Wednesday, August 10, 2011

Quando a Arte vira Rock, Parte CLXIV





"Fountain of the Great Lakes", de Lorado Taft, e a cantora Isobel Campbell.