Thursday, February 17, 2011

OKAY







Cutuquei a Lisa. "Lá, ó, atrás de você. Tá vindo". Ela arregalou o olho, prendeu a respiração. "Já vi". As duas quietas. As três, quero dizer. A baixinha Padminia parecia uma estátua. Ele passou pela nossa esquerda, segundos depois de bater a porta do prédio. Troço engraçado, aliás: a portaria do prédio residencial é também a porta de saída lateral da venue. Da casa de shows. A construção é a mesma. Então imagine só, o morador, saindo no corredor para recolher a correspondência, pantufa no pé, calça de moletom com elástico bambo na pança. E dá de cara com o cidadão: gorro enterrado na cabeça, mãos totalmente enfiadas nos bolsos do jeans, mochila estufada nas costas. Uma puta cara de poucos amigos. Vai pensar que entrou ladrão no condomínio. E não que o ogro em questão, uma hora e meia atrás, cantava no salão de festas.
Mark Lanegan tem quarenta e seis anos, mas caminha como um moleque de dezesseis. Tipo garoto que saiu pra rua logo depois de uma briga homérica com o pai. Encurvado, jogando o corpo para o lado, daquele jeito prestes a encher o pé e descarregar a raiva no latão de lixo da esquina. Nós três, mudas e paralisadas. Só nossos olhinhos se movendo na mesma direção, a que ele seguiu. Como naqueles quadros pendurados em paredes, nos filmes de mansões mal assombradas. Mesmo a cinquenta metros de distância deu para ouvir o estrondo quando ele arrancou a mochila do ombro e a jogou no chão, nada delicado. Encostou no muro do Shepherd's Bush Empire, esticou as pernas formando um triângulo com a parede e a calçada. E lá ficou, na rua vazia. Silêncio. E vem a Lisa e diz o óbvio ululante. "Tá de mau humor". Silêncio de novo. E agora, meninas? Alguém se habilita a cutucar a onça? "Ah....dane-se! Eu vim do Brasil, pô!". E lá fui eu, correndo, arriscando tomar um coice. Cheguei perto. Ele me viu. Continuou exatamente na mesma posição, impassível. Não sorriu. Olhou pra mim como se me visse todo dia, normal. Nada de oi. O que eu ouvi, de uma voz meio sussurrada, com a mesma entonação emocionante de quem diz "o preço do pão francês subiu" ou "a capital da Bulgária é Sófia", foi:

"Você mudou o cabelo."

Recuei um passo, meio surpresa. Por instinto minha mão subiu até a cabeça, agarrou a franja. Sim. Mudei o cabelo. Mas peralá. Ele já me viu assim antes. Seis meses atrás. Até reclamei aqui que ele não tinha comentado nada. Bom. Agora comentou. Satisfeita?
Claro que não! Meio ano pra notar, pô! Tudo isso! Ou ainda pior: passa meio ano e ele esquece que me viu!? Foi só meio ano, putz grila!
Humpf!
E foi aí que a luz se fez, revelando a dura verdade diante dos meus indignados olhos: Mark Lanegan é um homem.
Portanto, um ser devagar.
E como homem que é, mereceu ser tratado como seus pares, quando o assunto é falta de sensibilidade para com o visual feminino. Com impaciência.
Ainda com os fios entre os dedos, questionei, em alto e bom som anglossaxão:
"E TÁ BOM?"
Não foi bem o pedido de uma opinião. Era ordem de uma afirmação, oras. E ele sentiu que o tempo fechava. Que alguns relâmpagos já anunciavam a tempestade. E ele podia evitar o temporal. Era só soprar as nuvens com força, para a direção contrária. O sol voltaria a brilhar no meu rosto. Vai, Mark Lanegan. Capricha. Tô esperando, não me decepcion....

"Tá...okay".

What. That. Fuck...man!?! Okay!? Seja mais específico: em uma escala de zero a dez, quanto é isso? Okay, pra mim, é um mero aceitável, um satisfatório. Passável. Enfim, um okay é só okay, PQP! Posso sair na rua sem assustar criancinha, então? Que ótimo, hein Lanegão. Que okay!
"Toma, trouxe pra você.". Antes que eu me arrependesse, tirei da bolsa e joguei na mão dele o livro da vez. É que, a todo show que vou, dou um livro de presente para o Lanegan. Ele leu o título. Mais pra lá na rua, a Lisa observava tudo, esperando para ver se o boi de piranha (eu) seria ou não escorraçado pela fera com um rugido supersônico. Mais tarde, no fim da noite, a Lisa me diria que ela sacou o sinal verde quando ele pegou o livro. Porque a fisionomia mudou, iluminada. Foi aí que ela e a Padminia, stalker caloura, resolveram se aproximar da gente. Sem tanto medo.
Pudera, vai. Você não sorriria se ganhasse um livro de culinária? Mas não culinária gourmet, lógico. Culinária neanderthal mesmo. O nome desse guia indispensável ao homem glutão é genial. "Mosh Potatoes", compilado pelo produtor Steve Seabury. Trocadilho com "mash", purê. "Mosh" é aquele salto que o pessoal dá em shows de rock, pulando do palco e mergulhando na plateia (a Annix querida me corrigiu: no Brasil, chamam o stage dive de mosh. Mas na verdade o mosh é o empurra-empurra conhecido por "rodinha"). É que as receitas do livro são todas sugestões de caras que tocam ou cantam em bandas de heavy metal. Coisa fina.
"Você gosta de cozinhar?"
"É...um pouco."
Traduzindo para o português: "Não cozinho lhufas".
Hehe. Tudo bem. Ou melhor, tudo OKAY. As 150 receitas mostradas no livro não exigem prática nem tampouco habilidade. Pelo pouco que folheei do guia, qualquer macho com potencial para flechar um javali, esquartejar a perna do bicho com os caninos e botar a pata para rodar sobre o fogo apoiada entre duas forquilhas de madeira não terá dificuldade alguma em preparar os PFs do "Mosh". Entendi a felicidade do Lanegão diante de oferenda tão útil. Ah. Mesmo assim, bom esclarecer um ponto. Até mesmo para deixar bem claro que, em caso de tragédia, a culpa não será minha. Eu alertei ele. Dentro do livro, um recado meu. Escrito em um postal bonitinho, com um gato chinês gordo contemplando uma borboleta. "WARNING. Prometa para mim que você NÃO VAI testar a receita do Lemmy! Combinado? Eu não vou me perdoar se você destruir as cordas vocais".
A receita do Lemmy, o gracioso vocalista e baixista do Motorhead, é uma gororoba doce. E salgada também. Mistura, com elegância, farinha, xarope de chocolate, de morango, curry e....tutu de feijão. E brandy, pois a hã, como diria, comida, é flambada. Como tantos outros pratos da culinária mundial. O diferencial, todavia, é que o mimoso Krakatoa Surprise é preparado para ser deglutido enquanto a lava (no caso, o xarope de morango) arde em chamas. Como esse demente aqui faz. Portanto, se no próximo disco solo Mark Lanegan surpreender os fãs com uma nova voz, assemelhada à do Pato Donald, não foi por falta de aviso. OKAY?

Lisa cumprimentou o Lanegan, Padminia só olhava, tímida. Aquele impacto da primeira vez. Lisa, curiosa: "Mas o que você tá fazendo parado aqui?". "Esperando ônibus". Lisa com ar professoral que quase me fez rir: "Bom, você tem noção de que aqui não é ponto de ônibus, não é?". "É que falaram para eu esperar nesse lugar.". "Quando é que você vai voltar para São Paulo?". Eu adoro atormentá-lo. "Ah...não sei ainda.". "Você gostou da cidade?". Se fosse eu a gringa, teria odiado, he (sendo paulistana, reclamo mas gosto). "Eu mal tive tempo de ver...". "Onde você foi, lá?". "Ai, não sei te dizer bem...". "Algum museu?" (eu sabia que ele tinha ido ao MASP). "É, museu eu fui.". "Qual?". Pergunta maldosa, hehe. Já saquei um troço no cara: fica preocupado em te chatear quando não tem resposta a uma pergunta que ele acha que é importante para você. "Ai, desculpa, não sei...". Ajudei. "MASP, em uma avenida grande?". "Não sei....é um....é um que tem...uma escada".
Ah, agora sim facilitou. Museu com escada. Cabelo okay. Graças a Deus ele não usa esse vocabulário rico para compor letras de música.

A Lisa fez algumas perguntas sobre show em Bristol, cidade dela. Parece que vai rolar um lá, com a Isobel Campbell. Depois disso....eu não lembro muita coisa. O vinho que havia tomado com a Lisa, em um pub, deu aquela subida. A única recordação - que eu preferia esquecer - é do meu discurso no meio da calçada. Jesus. Logo eu, que mal balbucio palavras em português, discursando em inglês. Pelo pouco que ficou na minha memória, não foi nada na linha do "você não sabe como você é importante para mim". Foi mais humilde. Tipo "você não sabe como tem sorte de ter os fãs mais legais do mundo: nós". E falei bem da Lisa, da Padminia (e de nossa sólida amizade de quinze minutos atrás), da molecada no Brasil (Iaguinho, Maria, Claudio....), nos EUA (Guy), na Argentina (Clara). Típico discurso de briaco, com aquele papo de "te considero muito, você é muito meu amigo". Só que eu deixei claro que o amigo não era ele, e sim os outros, gente que eu encontrei no mundo por causa dele. Que mico, meu São Judas. Eu, contando que ele era uma boa ponte para conhecer pessoas. E ele riu e me agradeceu no final. Ainda não entendi bem do quê, mas OKAY.
"Meninas, vou indo.". Lisa abriu os braços. "Posso te abraçar?". Lisa, tu é a inglesa mais brasileira que eu conheço, hehe. "Pode, claro". O curioso de se abraçar alguém muito mais alto (e olha que eu tenho 1,69m) é que você não abraça. Você se pendura. Fica aquela coisa ridícula meio a tiracolo, com um braço seu escalando o ombro do sujeito, tentando fazer a curva do pescoço, e o outro braço passando por baixo do sovaco do poste. É uma posição de filhinho de macaco sagüi (trema, jamais te abandonarei) preso ao peito da mãe. Patético. Com a Lisa e comigo ele não teve grandes dificuldades. Somos mais altas do que a Padminia. Impagável a cara do Lanegan estudando qual o melhor jeito de abraçar aquele um metro e meio. Se ele não dobrasse as costas em um ângulo de quase noventa graus, perigava ganhar um abraço na altura da bunda. Ia ficar meio estranho.
Foi aí que eu, até então de costas para a rua, virei e tomei um susto. Estacionando junto ao meio fio, um transatlântico. Inteiro azul, o maior ônibus de turnê que já vi. Minutos depois a Lisa comentaria a vergonha. "Pensei que ele estava esperando ônibus, não O ônibus!". E ficamos as três lá, boca aberta. Não dá para explicar. Mas se houve um momento totalmente surreal em todas essas vezes em que encontrei Mark Lanegan, foi aquele. Ele na nossa frente, pernas separadas, mochila na mão esquerda, esperando o motorista acabar de estacionar, devagar. De repente a gente toma consciência de que o cara não carrega nos ombros apenas quinquilharias de mochila. Leva também o peso de um passado, que já virou História. E peso de histórias de uma época que marcou qualquer um que goste de música, de rock. Está tudo lá, naquela carapaça inquebrável de homem que não consegue esconder pequenos gestos e reações de uma alma eternamente presa a um desconforto e insegurança adolescentes. Para mim, Mark Lanegan nunca foi tão grunge como naquele instante, prestes a subir em um ônibus. Do meu lado, Lisa leu meus pensamentos. "Parece um errant schoolboy".
Não. Não parece. É. Ainda. E vai ser sempre assim.
Tomara. Por mim, tudo okay.

Thursday, February 10, 2011

Quando a Arte vira Rock, Parte CLVIII



"Study for the Head of Julius Caesar", 1520-1521, de Andrea Del Sarto, e Josh Homme, vocalista e guitarrista do Queens of the Stone Age.

Tuesday, February 08, 2011

Quando a Arte vira Rock, Parte CLVII



"Portrait of a Youth", de Alessandro Algardi, 1630, e Layne Staley, vocalista do Alice in Chains.

Saturday, February 05, 2011

Friday, February 04, 2011

Quando a Arte vira Rock, Parte CLV




"The Little Red Glove", de James McNeill Whistler, 1896-1902, e Eleanor Friedberger, vocalista do Fiery Furnaces.

Thursday, February 03, 2011

Quando a Arte vira Rock, Parte CLIV




"Demon", de Mikrail Vrubel, 1894, e Joey Ramone, vocalista dos Ramones.
(Joey Ramone não tirou fotos com olho nu. Nasceu, viveu e morreu de óculos. Sorry, faz de conta que a escultura tem um, tá. Ou você iria preferir que eu botasse o Brian May, do Queen, no lugar?).