Monday, September 13, 2010

As Meninas-Renda e a Menina-Algodão





Uma princesa. Cabelo loiro lisinho, natural, zero de maquiagem no rostinho de porcelana. Franja jogada de lado escondendo o olho. Lembrava a modelo Kate Moss quando bem novinha. Corpo delicado, bem alta. E a voz transparente, de sereia. Um anjinho assim, em um cabaré de strip-tease? Ela cantava para uma plateia minúscula. E aquele que mais queria vê-la não estava lá. Mas isso eu ainda não sabia. Também não sabia qual era a banda. Descobri dias depois. Uma mistura de Velvet Underground com Cocteau Twins. Ela, a vocalista, única garota entre três meninos. Seu nome, não sei até hoje.
Perfeição? Quase. Não fosse o vestido. Verde escuro, listras pretas horizontais, verticais, envolvendo as mangas. Comprido, descendo até as canelas. Disforme, sem graça. Opaco. Pena, uma menina tão linda embrulhada em um camisolão de tecido grosseiro. Talvez ela não quisesse ofuscar as luzes delicadas que caíam sobre o palco. Ou não interferir nas imagens celestes e nas espirais coloridas que giravam no telão, atrás dela. Merecia um vestido de pérolas, seda ou cetim, a Menina Sem Nome. Mas era algodão. Menina-Algodão.
Depois da última música, ela agradeceu e sumiu. Pessoas foram aparecendo, aparecendo, até preencherem os pedaços vazios da pistinha. E de repente, o Madame JoJo's - casa no Soho londrino, na antiga e revitalizada boca-do-lixo - ficou mais sofisticado. Elas eram três, dançando na frente do palco. Penteados impecáveis, fios de cabelo domados por spray. Cílios empapados com rímel, olhos contornados por lápis escuro, aquele ar de saúde que o blush dá. E todas as três embaladas por renda. Três vestidos elegantes, três cores diferentes. O mesmo material. Renda. A Menina-Renda preta parecia ansiosa. Olhava muito para o palco. Esperando a banda da noite? A Menina-Renda branca sabe que é linda. Cortou o cabelo bem curtinho, sem medo de mostrar as feições de boneca. O vestido é muito justo, parece costurado sobre o corpo. Uma pele alva de renda. A Menina-Renda verde-água, saia rodada, girava sem parar enquanto o DJ tocava Joy Division. Uma bailarina do pintor Degas.
Apagaram as luzes no cabaré. Olhei para baixo, na pista. As Meninas-Renda não estavam mais lá. As luzes se acenderam sobre o palco. Uma guitarra branca e preta estava colada ao vestido de renda champagne. A renda preta parecia se acalmar pelo contato com o baixo. Espremida atrás de teclados, não havia mais espaço para a renda turquesa rodopiar. E uma última menina estava sentada na bateria. Equilibrando um coque-banana! Quatro mocinhas. A banda americana The Like, o show secreto do indiscreto Madame Jojo's.
"Não, não é The Like." "É, sim, ué", falei. "Não....mas não é ela...". No intervalo entre os dois shows, um menino, gorrinho de lã na cabeça, sentou do meu lado. Preocupado. Perguntou se já havia acabado o show do The Like. "Nem começou.", tranquilizei. Ele respirou aliviado. "Ainda bem, cheguei na hora. Só quero ver The Like, estou pouco me lixando para a banda de abertura. Como ela se chama, aliás?". Nem ele conhecia a banda da Menina-Algodão. Pelo menos isso era o que eu pensava. Erro meu. Porque quando as Meninas-Renda ligaram os instrumentos, o moleque apavorou. "Cadê ela!?". "Quem?". Silêncio por uns instantes. "A vocalista do show de abertura...você viu? Era uma loirinha, cabelo nessa altura.". Ele apontou para o próprio omoplata. "É". "Ah....não. Era essa a banda que eu estava louco para ver. Confundi, achei que era The Like.". Ele cruzou os braços na frente do peito, suspirou, esticou as pernas. E ficou triste. Não era para tanto. Afinal, o som rolando no palco era bacana. Rock de garagem com aquelas pitadas bubblegum dos anos 60. Música ensolarada tocada por cinderelas rendadas, vestidas para o baile. O menino não se movia, não esboçava reação. Parecia distante. Sonhando com uma menina que cantava música lunar. "Cuida das minhas coisas enquanto eu vou até o bar?". "Cuido, lógico". As coisas dele se limitavam a uma sacolinha de plástico. Pelo formato quadradinho, havia um vinil dentro. Desleixado o garoto. Desanimado, havia largado o disco no chão. Catei a sacolinha, coloquei com cuidado sobre o estofado. Ele voltou, empurrou o vinil para o chão, se jogou no banco-sofá. Lá na frente as Meninas-Renda faziam bonito: um cover de "Why When Love is Gone?", canção dos Isley Brothers. O menino do gorro de lã olhava com indiferença. O mundinho dele era um reino preto-e-branco, melancólico, trancado para as princesinhas do The Like. Esqueci dele por uns instantes, melhor prestar atenção show, que estava quase no final. Até o momento em que tomei um susto. Ele, sacundindo meu ombro. "Que foi?", virei para o lado. O rosto do garoto, iluminado. "É ela!!". De pé, ao lado dele, a Menina-Algodão, sozinha, olhava na direção do palco. "É, é ela. Vai lá falar com el...". Não precisei terminar. Ele deu um pulo e grudou no vestido verde listrado, cochichando alguma coisa no ouvido da cantora. Ótimo, me concentrei no show, já no bis. Minutos depois, eu me virei. Queria ver se o menino estava progredindo. Mas, ao meu lado, o espaço vazio. O vinil não estava no chão. O menino do gorro de lã havia evaporado. E cadê a Menina-Algodão?

Então eu entendi.

Ah. O amor. Às vezes tão simples, suave, aconchegante.

Como algodão.

Sunday, September 05, 2010

The More You Ignore Me, The Closer I Get

"The more you ignore me/The closer I get/You're wasting your time/I'll be in the bar/With my head on the bar/I am now a central part/Of your mind's landscape/Whether you care or do not."

"Nenê, esse cara é muuuuito famoso?"

Minha prima. Ela que perguntou. E Nenê....bom, Nenê sou eu. Apelido que minha família botou em mim. Porque me registraram como Ana Luisa só para os outros me chamarem. Em casa eu sempre fui Nenê. Até entrar na escola, pra mim, meu nome era Nenê. Não gostei quando descobri que não era. Resultado: até hoje estranho quando me chamam por Ana Luisa. Quando converso comigo e me dou conselhos, é tipo assim: "Nenê, coragem, deixa de ser palerma, vai lá e faz. Você é uma mulher ou um rato?". Anos atrás, eu estava em uma festa junto com uns meninos que foram estagiários na promotoria de Atibaia. Um deles insistia em me tratar por "senhora". Porque queria, não porque eu tivesse pedido, lógico. Aí apareceu um moleque que tinha morado na rua da casa da minha avó, onde cresci. Foi conversar com a gente. Então, de um lado um me chamava de senhora - e o outro de Nenê. Nem sei qual dos dois queimava mais o meu filme. Até que alguém falou o meu nome. "Ana Luisa? Nenê, você se chama Ana Luisa?". "Chamo, ué. Você pensava que era o quê? Neide?". "Não. Lá na rua sempre comentaram que seu nome era Almerinda".

A minha prima mora, estuda e trabalha em Londres desde 2004. Ela é filha do irmão da minha mãe. Um dia eu perguntei para o meu tio que tipo de música ele costumava ouvir. "Nenhum". "Como, nenhum? Você não gosta?". "Não, de nada. Culpa da vovó, que me fazia ouvir uma praga chamada Vicente Celestino. Odeio música por causa dele.". Minha prima não chega a detestar música como o pai. Ela simplesmente não liga. Nem o namorado, inglês e surfista (sim, existe essa bizarra categoria. Eles fingem que surfam naquelas praias tristes e gélidas. E lamentam porque não são australianos), conseguiu empolgá-la a ouvir bandas novas e bacanas. Seis anos em Londres, e foi a apenas um show. É: UM. E justo na cidade em que rola um número absurdo e incontável de shows por ano, para todos os gostos. Não é falta de grana, é falta de vontade. Anos atrás, andando em Camden, na porta de um clube alguém deu para ela o ingresso do tal show. Grátis. Só por isso ela entrou. E pior, show do Raconteurs. Aquela banda do chato do Jack White. Era melhor ter ficado no placar zero.

Na verdade, o lance da minha prima é arquitetura, decoração. É isso o que ela estuda. E adora. Ela me explicou: hoje o quente em Londres é a especialização em design de interiores. Londres é uma metrópole impedida de crescer. Cidade histórica, tombada. Não tem lugar para novas construções. As já existentes são caríssimas. Ingleses se endividam pelo resto da vida para pagar a hipoteca da casa, que corresponde mais ou menos ao nosso financiamento. E a cada ano a população aumenta. Então, se não dá para construir, a solução é dividir o que já foi construído. Criar, desenvolver, implantar ideias originais e harmoniosas para bem aproveitar espaços. Cool. Todo ano, quem curte rock espera ansiosamente pelos dias de festivais britânicos. Glastonbury, Reading. Minha prima, ao contrário, só se anima para o fim-de-semana em que rola o Open House. Sempre no terceiro final-de-semana de setembro. É um evento pouco divulgado, grátis, que abre as portas de imóveis históricos, edifícios comerciais, prédios públicos e até de casas particulares para qualquer pessoa que quiser conhecer seu interior. Vale a pena para quem é interessado em arquitetura ou também para simples curiosos, já que muitos desses locais não autorizam a entrada de público no restante do ano. Ou até autorizam, mas se você agendar data e pagar. É o caso da sede financeira do Lloyds Bank (foto aí em cima). O prédio do Lloyds foi construído entre 1978 e 1986. É um exemplo de arquitetura high-tech. Serviu de cenário para Code 46, ficção científica inglesa de 2003, um dos meus filmes preferidos. O responsável pelo projeto é Richard Rogers, um dos arquitetos que projetou o Centre Pompidou em Paris. Tá velhinho, mas ainda na ativa. Ele que está projetando a terceira torre (!) do novo....World Trade Center (os americanos devem confiar cegamente no ditado do raio que não cai duas vezes no mesmo lugar. Eu, hein). O Lloyds foi um marco na arquitetura moderna. É chamado também de "Edifício pelo Avesso". Nas construções comuns, fiação, engrenagens, tubulação, escadas e elevadores são embutidos, escondidos por concreto dentro de corredores, paredes, tetos. No Lloyds eles ficam expostos do lado de fora do prédio, que é todo envidraçado. Então, cada parafusinho, roldana, encanamento, aparelho de ar condicionado foi cuidadosamente projetado por um arquiteto da equipe do cara. Um trabalho cão. Dizem que o Lloyds Building é tão detalhado quanto uma catedral gótica. Daí o outro apelido dele: Catedral Mecânica. Lindo.
Almocei com a minha prima no meu último dia em Londres. Depois a gente foi passear no Camden Market, mercado de roupas e quinquilharias para turista que hoje ocupa o espaço reformado de um antigo hospital para cavalos. É um labirinto de outlets. No meio, fica a sala da Proud Gallery. É lá que está rolando, até dia 12 desse mês, uma exposição de fotografias. "Six Shooters". Fotos de artistas tiradas por seis fotógrafos britânicos especializados em pop e rock. Minha prima quis ver. Para me agradar, provavelmente. Então, à medida que a gente ia andando, ela me perguntava quem eram as pessoas fotografadas. "Brian Jones? Queens of The Stone Age? Cat...o quê....Cat Power, isso é nome?". Até que paramos na frente de uma foto mostrando um cara, que ela reconheceu. E foi aí que a minha prima quis saber se ele era muuuito famoso. "É, ele é bem famoso". "Tá, mas ele é mais famoso do que o Axl Rose?". Minha prima só conhece as bandas de rock muito grandes. U2, Pearl Jam, Guns and Roses. Então, para ela, para ser famoso, tem que ser famoso nesse nível. "Não sei. Talvez o mais certo seja dizer que ele é muito idolatrado. Não por mim, embora eu reconheça a importância do sujeito.". "Ah tá. Eu só perguntei porque teve uma noite em que ele estava lá no pub". Minha prima é bartender e garçonete em um pub. Entra cedo, sai de madrugada. Adora. Perguntei rindo: "Cantando?". "Não, estava lá sentado. Vendo um outro cara cantar. Era a noite de folk". A crise econômica do ano retrasado bateu forte na Inglaterra. Lá, não foi uma marolinha, e sim um maremoto. Com o povo passando apertos, obviamente gastos com diversão foram reduzidos ou cortados. E beber é lazer. Inúmeros pubs fecharam as portas. Alguns sobreviveram. Os que sacaram que, além de álcool, era necessário algo mais para segurar a clientela. Nasceram então os superpubs: bares que além de cerveja servem também refeições completas, não apenas porções, e no fim da noite abrem espaço para festas - e pequenos shows. É o caso do pub da minha prima, que organiza noites temáticas: folk, hip hop, discotecagem anos 80, etc. "E você reconheceu o cara?", eu quis saber. "Eu não. É que o pessoal que trabalha comigo ficou agitado - você viu quem tá aí? você viu quem tá aí? - só por isso eu soube que ele estava lá. Não fosse por isso eu nem teria notado. Teve uma vez em que um garoto do staff pagou um tremendo mico. Ele ficou um tempão xavecando uma menina bonita. Perguntou o que ela fazia, ela disse ser atriz. Então ele soltou um talvez eu já tenha te visto por aí. E ela: provavelmente. Depois que a moça saiu, eu fiz o favor de explicar pra ele que não só ela era atriz como ainda estava concorrendo ao Oscar. Era a Carey Mulligan, hehe". A gente riu. Apontei para o cara da foto, voltando ao assunto. "E você foi falar com ele?". "Não, né! Nem conheço as músicas dele. Que música ele toca? E eu estava muito ocupada, cheia de coisa para fazer. Então um amigo meu que foi servir o cara. Só uma hora eu passei e dei uma olhada para ver como era a cara dele. A mesma aí da foto, com esse cabelo.". Eu ri muito. "Ele não toca nada, só canta. Cantava em uma banda dos anos 80 que é cultuada principalmente por gente um pouco mais velha do que nós. Aliás, eu sei de no mínimo uns vinte negos que venderiam a própria mãe para traficantes de mulheres só para ter estado no seu lugar". Ela achou engraçado e fez cara de "pra mim, tanto faz", levantando os ombros. Nisso, já era hora dela ir para o pub. Eu a acompanhei até lá, a gente se despediu na porta. Fui pegar o metrô para depois ir ao aeroporto. Lembrei de "The More You Ignore Me, The Closer I Get", ri. Mais tarde, com um computador, procurei a letra dessa música. Ri mais ainda. E não é que encaixa direitinho? Fucei também no site do pub da minha prima. Tem lá uma galeria de fotos. Imagens dos moleques do Snow Patrol e do Foals, discotecando. E minha prima nem falou nada. Lógico, ela não faz a mínima ideia de quem sejam. Incrível como essas coisas acontecem justamente com quem não dá muita bola para elas. Fiquei pensando nos vários outros famosos que já devem ter passado por esse pub. Sem minha prima nem se ligar. Ah, o dono quer que ela seja gerente. Confia nela, ela trabalha lá há anos. Ela vai recusar, com dor no coração. Porque pretende começar estágio em escritório de arquitetura, limitar o pub aos finais-semana. Tá certa, minha priminha corajosa que virou gente grande em Londres.
Se você estiver - ou for - para Londres, quiser tentar a sorte e quem sabe encontrar o célebre famoso da foto, tá aqui o pub.
Se for ao pub, por favor, diga para a Rosana que a Nenê mandou um beijão. Rosana é o nome da minha prima. A menina que um dia ignorou e esnobou uma lenda viva chamada Morrissey.