Sunday, May 16, 2010

Mark Lanegan em Londres, 04 de maio de 2010




Ah, Londres. Terra do Clash, terra da rainha. Eu sempre inventando desculpas para voltar lá. E minha melhor desculpa é, para variar, Mark Lanegan. Em turnê solo e acústica pela Europa desde abril. Novamente, desembarcar no aeroporto de Heathrow e passar pelo guichê da imigração com minha cara de peroba. Depois de oito vezes em Londres, viajando sozinha, por períodos curtos, já tenho medo de que os gringos pensem que sou mula (eu não disse mula, disse mula. Ai). Mas graças a Deus a palavra "rock" tem o poder de abrandar o coração mais duro e desconfiado de qualquer funcionário inglês. Ou funcionária. Dessa vez era uma ruiva com cara de poucos amigos. "Por que você veio para Londres?". "Para ver show de rock". Expressão de súbito interesse. "Ah, é? Qual?". "Mark Lanegan". Expressão de total ignorância. "Quantos dias você vai ficar?". "Uma semana, depois vou para Alemanha.". "Para ver show também?". Pô, aí a mulher já estava perguntando de curiosa. Que diferença faz o que eu iria fazer em Berlim? "Er...sim.". Bom, aquilo que eu tinha vergonha de que ela perguntasse a seguir, ela realmente não perguntou. Afirmou. "E é do mesmo cara!". "E...é..do..mesmo cara". Raio de mulher esperta. Deve ser uma boa agente de imigração. Carimbou meu passaporte rindo. Moral da história: para os britânicos não pareço uma perigosa mula internacional, e sim uma mera stalker internacional. Que bom.

Bom, dois dias depois da minha chegada, o dia do show, 04 de maio. Ingressos esgotados, mas já tinha comprado o meu. Lá fui eu no final da tarde dar uma olhada no clube, o Scala. Enquanto me aproximava, vi uma filinha de cinco pessoas. E aquela mulher já estava lá, segunda da fila! É o seguinte: em todo show londrino do Mark Lanegan, uma inglesa baixinha, cabelo curto e preto, bate cartão. E tenta se postar no melhor lugar na frente do palco (como eu, he). Nós duas já nos sacamos. Quando nos vemos nas filas ou dentro dos clubes, rola um olhar do tipo "mas você de novo, sua desocupada!". A maldita logo me reconheceu. Levantou uma sobrancelha, deu um sorrisinho de boca fechada. Aquela cara de "pois é, queridinha. Chegou tarde dessa vez". Lembrei da Ana Cristina. É que aos quatro, cinco anos de idade, eu frequentava a escolinha Patuá, perto da casa da minha avó. A Ana Cristina era minha coleguinha. Uma japonesinha miúda, com cara de brava. Ela usava, trezentos e sessenta e cinco dias do ano, um único tipo de calçado. Tamancos. Tamancos de madeira, como uma portuguesa (!). Com as unhinhas dos pés pintadas de vermelho. Meu, era muito estranho. Inverno, um frio dos infernos, e os tamancos lá, (des)combinando com o uniforme Adidas. Ana Cristina e eu voltávamos para nossas casas na Kombi escolar. A perua do Tio Mário ("van" é coisa de tempos modernos. Era perua mesmo, como de feirante). Tudo bem que a escola ficava a apenas duas quadras da casa da minha avó. E minha tia podia perfeitamente me apanhar todas as tardes, na hora da saída. Só que....eu não confiava nos meus familiares, he. Achava que ninguém iria me pegar na escola e levar de volta pra casa. Tinha certeza de que, com o Tio Mário me desovando diariamente no portão da vovó, não teriam como me devolver. Ah, e outra coisa: eu não era boba e já tinha me ligado de que subir todos os dias a rua Agudos a pé - praticamente uma parede de rapel - seria punk. Assim, para me tranquilizar, minha mãe me botou na perua. Embora a jornada até o lar durasse cerca de trinta segundos, eu fazia questão de me sentar junto à janela. E a Ana Cristina também. Copiona. Então, quando tocava o sinal de saída, nós duas catávamos nossas lancheiras e começávamos uma corrida em direção à perua, que acabava quando uma de nós se sentava junto à janela do lado esquerdo. Tá, a Kombi tem dois lados para serem ocupados, direito e esquerdo, eu sei. A gente não precisaria disputar um lado só. Mas o lance não era só pegar a janela. Existia um acordo tácito entre a gente de que a perdedora se sentaria sempre ao lado da campeã, para ser humilhada durante o trajeto (rapidamente humilhada, vez que eu descia da perua pouco tempo depois de ter subido). Bom, a Ana Cristina, calçando aqueles tamancos, seria uma eterna perdedora. Experimenta você correr de tamancos. Minhas velozes e bem amarradas congas com solado de borracha bateriam com facilidade aqueles tecos de madeiras com tiras instáveis. Mas o meu calcanhar de Aquiles....era a escada. O jardim da infância ficava no primeiro andar. Havia uma escadaria para descer antes de se chegar ao pátio da perua. E....hehe....aos quatro anos de idade eu ainda não sabia descer degraus. Esse negócio de colocar o pé direito em um degrau, o esquerdo no seguinte e assim sucessivamente....eu não conseguia. Eu colocava os dois pés, sucessivamente, em todos os degraus. Agarrada no corrimão, com medo de cair. E até hoje eu me atrapalho, não tem jeito de eu descer uma escada na correria. Assim, enquanto uma manada de crianças descia na velocidade da luz a merda da escada que não acabava nunca, eu, a passos de tartaruga, tentava ultrapassar os tamancos nipo-lusos. Muitas vezes eu vencia e conquistava o pódio - ou melhor, o assento. Para minha sorte, a Ana Cristina nunca teve a brilhante ideia de correr descalça.

Mas enfim. Na porta do show do Lanegan, mais de trinta anos depois do Patuá, a inglesa era o inimigo a ser derrotado. O alvo: chegar antes ao lado direito do palco, primeira fila. Olhei para os pés da mulher. All Star ao invés de tamancos. Bosta. Eu era a sétima pessoa da fila. Abriram a porta do clube, a inglesa disparou, eu fui atrás, enfiando o ingresso nas fuças do bilheteiro. Só que, no meio do caminho até o palco,...degraus de descida. Me atrasei ainda mais. Quando eu já ia me dar por vencida, chego ao lado direito do palco e....estava vazio. A inglesa estava do lado esquerdo. Tsc, tsc, quanto amadorismo. Depois de duzentos shows do Lanegan a fulana ainda não tinha aprendido que ele sempre se posiciona do lado direito do palco? Olhei para o palco e entendi: o suporte do microfone do lado esquerdo estava bem mais alto do que o do lado direito. E daí, fofa? Já ouviu falar num troço chamado "banda de abertura"? O microfone do lado direito não estava regulado para a alta estatura do Lanegan simplesmente porque ele não se apresentaria em primeiro lugar.

De fato, do lado direito da platéia, perto do palco, logo se formou um ajuntamento de fêmeas. Laneganetes do lado direito, rapazes e suas namoradas do lado esquerdo. Atrás de mim, uma menina com dois piercings espetados no lábio comia uma banana (!), que ela tirou de uma mochila. Do meu lado esquerdo, uma senhora grisalha (as européias tias acham bonito exibir uma cabeleira estilo gambá). Do lado direito, uma mãe gorducha com a filha gorducha e uma senhora desdentada. Ainda bem que o Lanegan só canta de olho fechado. Antes do show de abertura começar, eu resolvi me sentar no palco, que era baixo, e assim evitar que as bananas da menina da boca com pregos ficassem roçando nos meus cabelos (ela, a maior interessada, não parecia muito preocupada com isso). Foi aí que eu vi quando abriram a porta do....hã....backstage (camarim?). Era um quartinho pequenino. O Lanegan estava sentado em uma cadeirinha de ferro, dessas de armar. Os rapazes da apresentação de abertura saíram de lá. Era o Duke Garwood, acompanhado de um violinista magro e cabeludo tipo Jesus e por um outro tiozinho que se sentou em uma mini-mini bateria. O Duke Garwood faz um som tipo blues, com violão. Tem duas músicas muito bonitas, e outras que já esqueci. Durante o show, olhando para o vão embaixo da porta, dava para ver a sombra dos pés laneganísticos lá, no lugar da cadeirinha. Quando acabou a apresentação, o trio voltou para o quartinho. Abriu a porta e eu só vi um Mark sorridente pulando da cadeirinha e abrindo os brações para parabenizar os amigos.

E aí o roadie entrou no palco, baixou a altura do microfone esquerdo, subiu a do microfone direito. A cara da inglesa foi para o chão. Lancei pra ela aquele olhar maligno cultivado desde os meus quatro aninhos. "Chupa! Trouxa, hehe". Lanegão entrou junto com o guitarrista Dave Rosser, e as mil pessoas que estavam lá foram ao delírio. Puxa, seis anos sem shows da carreira solo do cara. Gostam muito dele no Reino Unido, muito mais do que nos EUA, seu país natal. Ah, foi tudo bem lindo. Repertório distribuído entre músicas solo, canções do Screaming Trees, uma do Queens Of The Stone Age, um cover muito legal de Julia Dream, do Pink Floyd. Eu chorei em Bell Black Ocean porque lembrei da minha avó. É a música mais bonita do show, que ficou mais delicada na versão acústica. Também descobri uma coisa que até então eu não havia sacado: em todo o show, o cidadão sua pra burro. Na última música dos shows, ele tá sempre encharcado e visivelmente acabado, cansado. Eu sempre pensei que o motivo era o calor provocado pelas luzes do palco. Até reparar, nesse show londrino, que o guitarrista - que se move muito mais do que o cantor - estava sequinho. Então eu observei melhor e entendi. O suor é devido ao esforço que o cara faz para modular a voz e soltar aqueles grunhidos mais graves. Ele canta fazendo caretas, puxando o ar com força pra dentro dos pulmões, apertando os olhinhos devido à força na hora de liberar o vozeirão. Resumindo: ele tem técnica. Sabe cantar, conduzir e segurar uma canção praticamente sozinho (suprindo as limitações da falta de instrumentos - no caso, um único violão que corria atrás da voz do Lanegan. Não o contrário. Mark que ditava o ritmo). Ao fim de cada música, o pessoal aplaudia e o Lanegan ficava sem graça, baixava a cabeça, olhava para os pés. Como se ele não merecesse o reconhecimento. Até que uma moça berrou para que ele desse um sorriso. Ele ficou vermelho e sorriu - mais por ter sido pego de surpresa do que por vontade de sorrir mesmo, hehe. E todo mundo soltou um AHHHH coletivo (do tipo, "Ahhhh, que bonitinho!") e riu dele. E ele ficou roxo de vergonha. Funny. A cena tá aqui.

Houve um bis, um segundo bis. Fim. E aí eu queria cumprir uma missão: perguntar para o homem se afinal de contas haveria ou não show em São Paulo. Meus queridos amigos, também fãs, queriam saber e todo mundo já estava meio sofrendo com a expectativa. Então não pensei duas vezes em apelar para um suborninho, uma pequena chantagem sentimental, he. Quem já se interessou em ler os posts deste singelo bloguinho já reparou que eu sempre presenteio o Lanegan com livros, no fim de cada show (ou no meio. Uma longa história). Só que dessa vez resolvi fazer diferente. É que as fotografias dos shows denunciam: nos últimos cinco anos o Lanegan usou, infalivelmente, a mesma (!) camisa. A camisa do Lanegan é uma versão indie para os tamancos lusitanos da Ana Cristina. O mesmo apego inexplicável. O Lanegan deve ser aquele tipo de cara que só compra roupa nova quando a atual fura (mas se fura em partes visíveis para o público. Tipo....no sovaco, ainda dá pra usar), no Carrefour mais próximo da residência dele. Então, antes do show dei uma passadinha na Topshop, loja londrina que é uma espécie de C&A, vai. Lá eu achei uma camisa jeans muito decente. Jeans é bom porque é fácil de lavar, secar e não amassa. Na etiqueta pregada na altura do pescoço tinha impresso um puta "MADE IN CHINA" gigante. Fiquei pensativa. Pega mal? Não, né. China ué, por que o mau juízo em pensar que os bens manufaturados chineses são inevitavelmente ralés? Camisa bem cortada, puxa. Alfaiataria oriental. Bom, superados meus preconceitos, veio o problema do tamanho. Que tamanho ele usa? Vixe, achei o tamanho grande meio pequeno para os ombros largões do sujeito, que é robusto e fortinho (não gordo. Compacto). A gente tem que pensar que o designer chinês projetou a camisa visando o homem inglês médio, que é esbelto e tem corpo de gazela. Mark é americano, não lembra em nada aquela figura tipo Papai-Pernilongo do príncipe Charles. E assim decidi, inchada de orgulho do meu bom gosto: camisa made in China extra-large. Afinal, o que abunda, não prejudica! Você pode contemplá-la aqui. Esse treco marrom que aparece ao lado dela é a embalagem de pano dentro da qual a coloquei, dobradinha, e que depois foi amarrada com uma fita. Lógico, antes eu borrifei no sino-anglo-jeans uma nuvem de Armani Code, o melhor perfume do planeta. Ah, e dentro eu coloquei também um cartãozinho mostrando na capa uma bonita pintura japonesa (para combinar com o clima oriental, hehe), no qual escrevi uma respeitosa mensagem com caneta lilás (perfume de framboesas). Escrevi que a camisa era um presente meu e de vários amigos, fãs dele, que não tinham como viajar para vê-lo. Escrevi também que dessa vez não tinha tido nenhuma grande ideia para um livro, mas que eu achava que talvez ele andasse precisando de uma camisa. Adoro ser útil.

Acabada a apresentação, a massa deixou o clube. Sobraram umas dez pessoas. Aí ele apareceu e o pessoal começou a pedir autógrafos e fotos. Esperei minha vez, cheguei perto. "Oi. Lembra de mim?". "The girl who always gives me books". Ha. Ele é tímido, fala baixinho. Eu sou tímida, falo baixinho. Então a conversa pareceu mais um cochicho. Tirei o sacão de pano da minha bolsona, falei que era presente meu e....bom, eu precisava dar um número mais ou menos exato das pessoas presenteantes. No cartão eu havia posto que era presente dado por várias pessoas. É que eu dei o presente em nome de um grupo. Mas só depois o grupo ficou sabendo disso, hehe (ninguém achou ruim. Então o gesto foi ratificado). Mas quantos? Fiz rapidamente uma conta por cima....Iago, Maria, Claudio, Daniel, Eduardo...fui calculando. "Presente meu e de mais vinte pessoas". Foi o que falei. Não é um número exuberante, mas eu não queria mentir. Ele agradeceu. E aí eu comecei o interrogatório. "Você vai voltar para São Paulo esse ano?". "Eu estou tentando. Talvez agora no verão eu vá" (nosso inverno). "Vai, vá, por favor.". "'É, eu tô tentando."."Ah, por favor, vai, vá, diz que sim, vai, por favor, vai". "Eu tô tentando". "Mas tá mesmo?". "Tô". "De verdade?". "Tô tentando". Hehe. O homem é um poço de paciência. Depois do sétimo "I'm trying", eu de mãozinhas cruzadas em posição de quem implora, ele me interrompeu para perguntar..."Er...quantas pessoas mesmo você disse que deram o presente?". "Vinte". Ele arregalou o olho e exclamou "Jesus!" ("Djísus!"). Que coisa. Aquilo que pra mim era pouco, para ele era muito. Bom, aí outros fãs esperavam para falar com ele. Era hora de ir embora.

As pessoas se despediam com apertos de mão, então segui o protocolo. Falei um tchau, estendi a minha, ele pegou nos meus dedos sem pressionar, como se fossem de vidro. Parecia mais um jeito desajeitado de segurar na mão do que um aperto de mão. E aí que veio meu susto. Porque ele não disse nada. "Bye" ou "thank you", absolutamente nada. Ele não abriu a boca e não sorriu, não mexeu um músculo sequer da face. Ele deu um passo para frente, inclinou a cabeça procurando enxergar meus olhos meio cobertos pela franja e....por uns dois segundos me encarou com a expressão mais séria que eu me lembro de um cara ter me olhado. Fiquei pasma. Porque ele me olhou de um jeito que eu apenas vi em homens....olhando para outros homens. Nunca para uma mulher. Da forma que um homem olha para um homem por quem sente muita consideração e respeito. Esclarecendo: o olhar dele não tinha nada de malicioso. Não, ele não tá a fim de me pegar, tenho certeza (azar o meu, que não sou irresistível. Mas tudo bem, dá para viver conformada, hehe!). E - mais importante - o olhar dele não tinha nada de paternal. Ou de ares professorais. O olhar dele não me reduzia a uma menininha, a uma aprendiz. Aumentava. Mesmo ele sendo (bem) mais alto do que eu, eu me senti gigante. E aumentava porque dava - e reconhecia - valor. Foi como se ele me dissesse: "O fato de você gostar tanto da minha música é um privilégio totalmente meu! Não seu.". Isso é muito, muito raro vindo de um cara. E justamente de um cara genial. Porque homens são seres extremamente vaidosos (não, não sou feminista. Só vou escrever aqui o que já testemunhei nestes meus trinta e cinco anos). Não digo vaidade referente a aparência física. Estou falando de ego. E uma das manifestações de vaidade mais frequentes é o autoelogio. Direto ou como falsa modéstia. Depois do tal olhar do Lanegan, imediatamente passaram pela minha mente as várias vezes em que, após contar alguma vantagem, algum sujeito me olhou com expressão de "ah, como você é privilegiada por me conhecer", "ah, como você é privilegiada por estar comigo", "ah, como você é privilegiada por aprender comigo". Não tem nada mais ofensivo para a inteligência de uma mulher do que ser transformada em mero espelho do ego inflado de um homem. E não existe atitude mais cafona, patética e constrangedora, para um cara, do que o falar bem de si próprio. Do que dar nota (alta) para a própria competência - seja profissional, seja cultural. Eu não quero ouvir, por exemplo, fulano me dizendo quantos Júris ganhou ao longo da carreira. Não quero ler sicrano anunciando a importância de um artigo publicado - que ele mesmo escreveu. Não que eu não fique contente com as conquistas e satisfações alheias e não queria saber a respeito delas. Lógico que quero. Mas quero saber pelos outros. Pelos outros. Porque se o cara é bom, bom mesmo, cool.....com certeza os outros reconhecerão seu valor e as boas novas chegarão aos meus ouvidos e olhos. E aí - só aí - eu vou achar bacana e ficar feliz. Autopropaganda, para mim, é só bullshit. E propaganda de si próprio eu nunca - nunca - ouvi ou li Mark Lanegan fazendo. Em entrevistas, ele nunca engrandece o próprio trabalho. Ao contrário. Engrandece o trabalho daqueles com quem colabora. E se é para falar de si, fala de seus reveses, conta o que deu errado - não o que deu certo. Em uma revista, ele comentou que, na época em que era vivo, Johnny Cash pediu que compositores lhe enviassem músicas inéditas para que ele escolhesse algumas e gravasse. Mark disse que mandou canções. E que foram reprovadas. Que coisa. Mark Lanegan é uma figurinha rara e para sempre super bem-vinda. Um rapaz nascido em uma cidadezinha caipira do tamanho de um ovo, filho de um professor de escola, não de um figurão. Não ocupa cargo de destaque em empresa importante, não é doutor de absolutamente nada. Um moço que há vinte anos viveu o auge da fama na era do grunge, mas manteve seus princípios. Que hoje em dia não virou um amargurado por não ser mais tão famoso e bajulado. Que é sinceramente feliz por não ser mais tão famoso e bajulado, e que derrama o coração na frente de mil pessoas da mesma forma que derramava na presença de dez mil, ou mais. Que não se incomoda em não ser a estrela principal e abrir shows de gente que atrai mais público do que ele (Soulsavers com Lanegan abriram os shows da turnê européira do Depeche Mode, ano passado). E que, quando é a estrela principal, não se esquece de prestigiar quem abre seus shows - mesmo que isso signifique ouvir a mesma apresentação pela décima vez, sentadinho em uma cadeira dura. Um cara que reage a um presente dado por vinte gatos-pingados da forma que muitos só reagiriam se fossem presenteados por duzentos. E que é capaz de olhar uma freak grudenta como eu de maneira solene, agradecida e honestamente humilde. Tudo isso tem nome. Educação. Classe. Porque vaidade é coisa de homem. Mas Mark Lanegan é Homem.

Fui embora do Scala, meio fora de eixo. Pensando nesse lance da vaidade. O que acontece com o mundo? Por que tantas mulheres aceitam tolerar a chatice vaidosa de tantos caras? Resolvi que estou fora. Virarei as costas, desligarei telefone, fecharei tela de computador toda vez que um mala resolver despejar seu ego em cima de mim, como se me presenteasse com algo muito precioso. Pronto. Serei má, muito má.
Depois do Scala, passei em um cyber-café, voltei para o hotel. No quarto, percebi que havia esquecido minhas luvas no café. Droga, não queria ficar sem elas. Tranquei a bolsa, desci de novo para a rua. Correndo feito uma louca pela Bayswater (que não tem degraus de descida), eu não conseguia parar de lembrar da pequena deferência do Lanegan. Que bacana, um olhar de apenas dois segundos, mas cheio de consideração, dois dias depois de eu ter chegado em Londres. Terra do Clash, terra da rainha. Nunca verei o Clash, não vi a rainha. Mas, em dois segundos, entendi perfeitamente o significado e o valor inestimável de ser tratada como uma.


(E no próximo dia 24 de junho, em São Paulo, no clube Comitê - que ainda não existe, mas existirá mês que vem - show do Mark Lanegan! Vamos?)