Tuesday, January 26, 2010

2009 - Parte 4 - Livros























Livros que fizeram diferença na minha vidinha, ano passado.

"I See a Darkness", Reinhard Kleist
Biografia em quadrinhos de Johnny Cash publicada meses atrás, inclusive por aqui. Inteira em preto-e-branco. Soturna, mas impactante: os desenhos em perspectiva parecem saltar do papel. Reinhard Kleist, quadrinista alemão e grafiteiro em Berlim, conta a história do cantor americano de uma forma mais abrangente do que aquela retratada no filme "Johnny & June". O filme prioriza o romance com June Carter, os quadrinhos valorizam cada momento árduo e sofrido da trajetória de Johnny: a infância pobre como lavrador, a perda do irmão querido, o modesto sucesso que levou ao vício em anfetamina, as explosões de agressividade, o lendário show para uma plateia de presidiários. E, no finzinho, a velhice melancólica e doente. Johnny deitado na cama, se contorcendo em crise de abstinência, é o desenho mais tocante e inesquecível de toda a biografia. O livro é uma homenagem bonita, emocionante e criativa a Johnny Cash, tão genial, tão subestimado.


"After the Wall", Jana Hensel
Você se lembra do lado pop da sua infância? Dos desenhos animados Hanna-Barbera, do seriado Chip's? Das balas Paquera? Quando o Muro de Berlim foi derrubado, Jana Hensel era um ano mais nova do que eu. Treze anos. Entrando na adolescência, a alemãzinha oriental viu seu passado ser soterrado junto com os escombros do cimento e dos tijolos arrebentados. Crescida, já jornalista, Jana escreveu uma pequena biografia revelando aspectos do cotidiano e da cultura pop em um país comunista. Os programas estatais de TV, os produtos limitados que eram vendidos nos mercados, as revistas controladas pelo governo, o único tipo de tênis disponível nas lojas, a tentativa dos jovens europeus do leste em imitar os do oeste, com roupas e cabelos inspirados nas bandas de rock Depeche Mode e The Cure. A queda do Muro significou o fim de um regime autoritário. E também uma mudança brusca e imediata na vida de adolescentes e crianças que cresceram impedidos de tomar contato com a cultura de massa ocidental - mas que, da noite para o dia, se viram invadidos por ela. Quando, depois da unificação alemã, Jana vai morar na França em uma república de estudantes estrangeiros, sua ignorância e desconhecimento sobre a existência de ícones pop como Smurfs, Asterix, a trilogia Senhor dos Anéis, a exclui das conversas animadas. No fim do livro, um desabafo: na década de 90, jovens alemães orientais se consideravam mais próximos de húngaros, tchecos e poloneses do que dos estranhos e esnobes alemães ocidentais.


"A Rainha Margot", Alexandre Dumas
Eu sempre achei que Joel Surnow é Alexandre Dumas reencarnado. O americano Joel Surnow é o criador e produtor do seriado "24" (e também de "La Femme Nikita", minha série preferida de todos os tempos. Só eu via). Joel Surnow sabe misturar como ninguém intrigas envolvendo chefes de Estado, traições, vingança, tramóias, conspirações, tortura, assassinatos. E o melhor: consegue bolar reviravoltas inesperadas em enredos frenéticos, que prendem a atenção da gente até o próximo capítulo. Tudo isso, Alexandre Dumas fez. Só que no século XIX. Ao invés de presidentes americanos, os poderosos dos romances de Dumas são os monarcas franceses. No lugar do capanga guarda-costas Jack Bauer, os capangas guarda-costas mosqueteiros do rei. Da mesma forma que Surnow, Dumas usa fatos históricos como pano de fundo em seus livros. Se em "24", americanos combatem terroristas, no sensacional "A Rainha Margot" a luta é entre católicos e protestantes. Em 1572, Margarida de Valois se casa com o rei Henrique de Navarra. Ela católica, ele protestante. O casamento é uma tentativa de apaziguar a hostilidade entre os dois grupos religiosos. Só que a sogra do rei, a perversa Catarina de Médicis, quer se livrar do genro, secretamente...o auge da tensão rola no dia 24 de agosto daquele ano, quando milhares de protestantes são massacrados nas ruas e casinhas de Paris. Foi a terrível Noite de São Bartolomeu, que teve um objetivo: desqualificar, enfraquecer e destronar o marido de Margot. A ordem para a matança partiu do palácio do Louvre. Mesclando acontecimentos reais com fatos fictícios, ágeis e bem amarrados, Alexandre Dumas escreveu um livrão. Nos dois sentidos.

"Things The Grandchildren Should Know", Mark Oliver Everett
O americano Mark Oliver Everett não é apenas Eels, a banda rock-folk de um homem só. Mark Oliver Everett é também o Homem Mais Desgraçado do Mundo. Desgraçado não no sentido de sacana, mas de cheio de desgraças, mesmo. Seu pai sofreu infarto e morreu. Um avião caiu no meio da rua onde morava (!), e Mark se viu cercado por corpos. A irmã drogada foi estuprada - não por um homem, mas por uma gangue deles - e se matou. Antes disso, o próprio Mark quase foi assassinado pelo namorado dela. Mark foi seguidamente largado por todas as namoradas, perdeu a mãe, vítima de câncer de pulmão. Sua melhor amiga também morreu. Morreu o roadie da banda. Morreram os primos no 11 De Setembro, dentro de um dos aviões sequestrados. Até a vizinha do sujeito não foi poupada: morreu também. Mas o que mais impressiona no livro autobiográfico desse verdadeiro pára-raio de infortúnios não é a sucessão de zicas - e sim a capacidade de Mark em imprimir um tom otimista, e de certa forma bem-humorado, à sua história lazarenta, sem um pingo de autopiedade, zero de amargura. Uma história triste, que teve o grande mérito de resultar em um excelente livro. Não por causa do teor trágico e comovente de seus vários episódios dolorosos, mas sim pela forma suave através da qual Eels conseguiu redigí-los. Isso é saber escrever. Mark Oliver Everett é, hoje, um homem sozinho. Vive na companhia de um cachorro. Consolo? Umas palavrinhas de Schopenhauer talvez ajudem. "A solidão é a sorte de todos os espíritos excepcionais".


"Juliet, Naked", Nick Hornby
Um inglês bocó é fanático por um cantor e compositor americano meio desconhecido, que encerrou a carreira há anos e sumiu do mapa. O bocó vive junto com uma coitada, uma moça resignada que atura a obsessão do marido sem reclamar. Graças ao lançamento de um novo disco pelo cantor - uma compilação de músicas toscas e rascunhadas - os fãs se agitam e discutem o grande acontecimento através de um site na internet. É quando o americano entra em contato com a mulher do bocó.
Lendo a história, eu vesti a carapuça umas duzentas vezes. Eu queria ser a mocinha, mas meu passado, presente e futuro denunciam: eu sou o bocó.
Comédia bacana, divertida! Livro que eu daria de presente para qualquer um, tranquilamente. Menos para Mark Lanegan.

Friday, January 08, 2010

Herói Sem Máscara

Pausa na retrospectiva de 2009 - vou postar o texto do Robert Downey Junior que foi publicado mês passado na revista Movie, tá. Minha versão original. Agora saiu quase na íntegra também no site da revista, todo bonitão, cercado por fotos, vídeos e com a listinha de bizarrices e curiosidades que descobri sobre o moço. Vai lá. E volta aqui. Ou lê aqui e vai lá.
Foi em 1970 que Robert Downey Senior entregou ao filho, nascido cinco anos antes, o presente insólito. Um papel. O primeiro papel de Robert Downey Junior como personagem em um mundo inédito, fascinante, de sonhos fabricados. Era o início precoce no cinema. Aos oito anos de idade o ator mirim foi de novo presenteado pelo pai diretor. Outro papel, bem diferente do anterior. Enrolado, trazendo um recheio inusitado: maconha. O primeiro papel do garoto novaiorquino como personagem um mundo também desconhecido e atraente, mas doloroso, de pesadelos tóxicos. Era o início precoce no vício.
Estúdios, bastidores, cenários e câmeras viram Robert crescer. Sua formação incluiu até mesmo aulas de ballet. Teen, marcou presença em comédias assinadas por John Hughes. Adulto, duas disputas ao Oscar: em 1993, por melhor ator graças à personificação magistral de Charles Chaplin em Chaplin; este ano, para melhor coadjuvante por roubar a cena no hilário Trovão Tropical, irreconhecível no papel de um negro. São mais de 60 filmes em 36 anos de carreira, cinco dos quais ele conciliou trabalhos na TV: na série Ally McBeal, ele também canta, improvisando covers de canções de Bruce Springsteen, The Police.
Tamanha produtividade já impressionaria se Downey Jr. fosse o tipo de astro centrado, disciplinado, moço certinho. Como Tom Cruise. Não é. Se a extensa filmografia de Robert é capaz de intimidar o ator veterano mais experiente, sua ficha policial surte igual efeito em qualquer rock star explosivo e descontrolado. Dependente químico, por anos alternou estúdios e sets com rehab, delegacias, tribunais, prisão. Detido por posse ilegal de arma e drogas, peitou ordens judiciais, violou condicionais, foi flagrado dirigindo seu Porsche, bêbado – e pelado. Criou constrangimentos para diretores, elencos: nas filmagens de US Marshals, foi vigiado por oficial de justiça e companhia de seguros. Sua urina era colhida e testada de três em três horas para que fosse detectada a possível presença de substâncias ilícitas.
Claro que Downey Jr. não foi o único ator de sua geração a mesclar fama e encrencas com a lei. Mickey Rourke agrediu a mulher e foi preso; câmeras gravaram Winona Ryder furtando uma loja. Após esses vexames, ele deu um tempo na carreira para se dedicar ao boxe, ela fugiu dos holofotes. Robert ficou, provando que é a antítese do iron man: um ser de carne e osso cujo corpo doente nunca se beneficiou da proteção de uma carapaça metálica para evitar seu pior vilão: o próprio ator. O herói revelou sua fraqueza, seu sofrimento, seus defeitos para o público e mídia com o rosto exposto. Sem máscara.
Em 2003, Robert reconheceu seu ponto de saturação. Manter uma carreira (senão de sucesso, ao menos estável), a proximidade dos amigos e de Indio, o filho hoje adolescente, reconquistar a confiança de cineastas e produtores: boas razões que pesaram para o adeus definitivo dado às drogas. Durante as filmagens de Na Companhia do Medo, Downey Jr. conheceu Susan Levin. Robert estava se divorciando da mãe de Indio. Comentando o filme tempos depois, ele afirmaria que sua melhor lembrança do set era ter xavecado – e ganhado – a produtora. Mas Susan foi taxativa: não se relacionaria com um viciado. A reação de um Robert apaixonado veio sob forma de canção. Em 2004 foi lançado The Futurist, único álbum do ator que compôs melodias e escreveu letras para oito baladas com tom folk. “Se você acha que sou apocalíptico, ou frio e obscuro...por favor, nunca vá embora”, a voz suave de Robert confessa e implora na triste Little Clownz. Susan atendeu a súplica. E qual namorada abandonaria um cara que lhe dá, de presente de aniversário, um pedido de casamento e na noite do Oscar a apresenta às emissoras de televisão anunciando: “esta é minha eterna mulher”?
Aos 44 anos, Robert é o astro carismático plenamente comfortable in his own skin – à vontade na própria pele. Nas telas, sua atuação é tão desenvolta, natural e segura que transmite a sensação de que, mesmo após o grito de “corta!”, o personagem sai do set e continua a existir na realidade. A escritora Anne Rice o quer como vampiro Lestat na continuação de Entrevista Com O Vampiro, Hugh Hefner disse que ficaria honrado se Robert o interpretasse em seu filme biográfico (e há algo mais cool do que ser solicitado pelo próprio e lendário criador da revista Playboy?). Homem de Ferro 2 está a caminho e Sherlock Holmes tem tudo para ser o blockbuster do verão: no filme, o detetive mais famoso da literatura é boêmio, brigão, mulherengo e se veste com trajes vitorianos inspirados no rolling stone Brian Jones. E Robert empresta ao personagem seu traço mais charmoso: aquele sorriso um tanto sarcástico, meio safado, 100% sedutor que se insinua quando o ator ergue as sobrancelhas. Irresistível.
Drug-free, Downey Jr. vem sendo agraciado com todas as honrarias pop dignas de um astro que se firmou na indústria mais competitiva e imprevisível do universo das artes. Cravou sua estrela na calçada da fama, é medalha de bronze na lista deste ano da revista Empire que elegeu os 100 sexiest movie stars (atrás de Robert Pattinson e de Johnny Depp, o campeão), virou peça de museu: um clone de cera está ao alcance dos fãs no supervisitado Madame Tussauds em Hollywood. No ano em que a séria e tradicional Academia de Cinema preferiu prestar uma homenagem ao falecido Heath Ledger, concorrente de Robert, a descolada Academia de Ficção Científica, Fantasia e Filmes de Terror sentenciou: Robert Downey Jr. é o melhor ator de 2009 por Homem de Ferro. E se o Oscar 2009 não sorriu para Robert, não será Robert que provocará sorrisos e risos no Oscar 2010: “não, obrigado” foi a reposta ao convite para ser o apresentador da próxima cerimônia. Lógico. A ambição máxima do ator não é subir no palco para ter visão privilegiada de seus colegas (não raro, gente de talento inferior ao seu) faturando prêmios. Robert quer mais. Quer, sim, descer do palco segurando uma estatueta dourada. A dele. E ele sabe – como nós também sabemos - que está muito perto de conseguir. Óbvio. Os super heróis sempre vencem no final.

Sunday, January 03, 2010

2009 - Parte 3 - Filmes



Eu não me lembro muito bem de quantos filmes assisti durante o ano, no cinema. Foram poucos. Minha modesta lista de melhores de 2009 reúne as películas (adoro essa palavra, he) mais legais entre aquelas minguadas que vi. "Bastardos Inglórios" é um filmão, mas como já saíram trocentas resenhas sobre ele por aí, nem vou comentar. "The Cat Piano" é um desenho curta-metragem que tá todo no youtube. Eu escrevi um textinho a respeito dele para a revista Movie. Não foi publicado, então vou desová-lo aqui. Meu filme preferido do ano passado tem relação com as imagens aí em cima. Estréia em São Paulo mês que vem. Só vai atrair platéia feminina. E gay.
Adoro comédias inglesas. Sempre saio do cinema me achando linda. Enquanto no cinema americano até simples garçonetes têm a aparência da Megan Fox, nos filmes britânicos todo mundo é feio de doer: mocinhas, mocinhos, vilões, coadjuvantes, figurantes e pets são meio disformes, enrugados, com dentes amarelos e encavalados. Não são gente como a gente. São gente pior que a gente. E na verdade nem há mocinhas e mocinhos propriamente ditos. Os protagonistas costumam ser mais velhos, de meia-idade. Eric Bishop é um carteiro em depressão. Apaixonado pela primeira ex-mulher, criando os filhos folgados e encrencados da segunda, a única alegria do tiozinho (interpretado pelo ex-baixista da banda The Fall, Steve Evets - uma espécie de Seu Madruga sem bigode) é o futebol. Eric é torcedor fanático do Manchester United e seu grande ídolo é o jogador francês no time, Eric Cantona (um inglês idolatrando um francês - já se nota aí o estado crítico de carência do carteiro). Cantona existe de verdade ("Ohhhh...não diga", dirá você, homem que acompanha futebol). Eric Bishop, então, começa a sofrer alucinações: recebe visitas de Eric Cantona (fazendo papel de si próprio) que vira seu confidente e guru, como se fosse um guia de autoajuda ambulante que solta pérolas de sabedoria filosófica de botequim (melhor, de pub). Comédia para meninos, cheia de referências sobre jogos de futiba, insegurança masculina e cultura pop. E, além de divertir, embeleza.
Vi em Londres. Ficção científica filosófica. Com um nome simples, óbvio, marcante e bonito, não? Um astronauta, empregado de uma empresa privada, mora em uma base lunar. Sozinho, sua única companhia é um computador falante (sim, você já viu isso antes), cuja voz é a do ator Kevin Spacey. Após anos no espaço e prestes a concluir o contrato de pesquisa, o rapaz está ansioso para voltar à Terra, rever mulher e conhecer a filha que nasceu durante o período de viagem. Só que....
Trama intrigante e bem bolada. E econômica, pois quase não há efeitos especiais - a história corre quase toda dentro da base. Agora, o detalhe mais bacana e emocionante: o diretor é o jovem Duncan Jones. Duncan Jones tem pai famoso. David Bowie. E David Bowie é, na verdade,...Ziggy Stardust. Então, "Moon" não é só mais um filme de ficção científica. É a primeira ficção científica filmada pelo filho de um alienígena! Life on Moon!
"The Cat Piano"
1996. Cuidada por álcool e tabaco, a voz grave do australiano Nick Cave cantava desespero e angústia em músicas que abordavam amor, culpa, fracasso, morte. Enquanto isso, no país natal de Cave, três moleques de quatorze anos se uniam graças a uma paixão comum: desenhos animados. Da amizade nasceu “The People’s Republic of Animation” (PRA), pequeno estúdio de animação. A garotada cresceu, veio o novo século. E o co-fundador Eddie White teve a idéia: escreveu “The Cat Piano”, poema mesclando o romance e boemia da poesia beatnik com o mistério e terror típicos dos contos de Edgard Allan Poe. O estúdio então arregaçou as mangas para ilustrar e produzir uma pequena jóia de oito minutos, suavemente pintada de azul, preto, detalhes em branco: em uma cidade dominada por felinos cantores, um escritor apaixonado tenta salvar sua musa, presa em um instrumento musical de tortura - o piano de gatos. Eddie convidou, Nick Cave disse sim: é ele quem declama o poema, narrando a história na primeira pessoa. Ou melhor, no primeiro gato (o protagonista foi desenhado à imagem e semelhança do magro e soturno cantor). O PRA disponibilizou “The Cat Piano” no youtube, a ideia é que todos vejam. Em 2009, o curta faturou prêmios bacanas na Austrália. Eddie White e seus dois amigos têm motivos para comemorar. E agradecer. Não apenas a Nick Cave, mas também a três adolescentes de quatorze anos que, nos meados dos anos 90, planejaram e rascunharam um projeto de vida, transformando um sonho em realidade colorida.
Beatles, Rolling Stones, The Kinks. A minissaia de Mary Quant, o carrinho Mini-Cooper. A Inglaterra faturando a Copa de 66. Londres foi o centro do Universo durante a década de 60. Os efeitos negros do pós-guerra haviam ficado para trás, a economia solidificou-se. Explosão cultural, euforia, a cidade tornou-se uma referência em música, artes, cinema. E moda. Os anos dourados de Londres foram batizados de Swinging London, movimento que revolucionou a cultura de um país e atraiu a atenção de jovens de todo o planeta. Incluindo a de duas garotas. Uma delas, londrina, jornalista por influência do pai, especializou-se em moda. A outra, galesa, adotou Londres como lar, trabalhou como modelo até sofrer um acidente de carro. Com o rosto marcado, deixou as passarelas e se tornou editora de uma revista de moda.
"The September Issue" é o documentário real que mostra um mês de trabalho na redação da revista Vogue americana, e o esforço da equipe para elaborar e fechar a edição de setembro. Na moda, setembro é janeiro, mês no qual os estilistas apresentam as coleções que serão vendidas nos próximos onze meses. Só que o filme não trata a moda como seu tema principal. "The September Issue" é sobre tensão, conflitos, bajulação no ambiente de trabalho. Sobre influência e poder. Sobre arte. Com pitadas de rock. E sobre solidão.
Anna Wintour é o cérebro da Vogue americana. Na década de 80, tentando um emprego na revista, foi entrevistada pela então editora-chefe. Que quis saber qual cargo Anna teria interesse em ocupar na redação. "O seu", disparou a londrina. E ocupou. A mulher foi sucedida por Anna, que reformulou a publicação, aumentou as vendas e levou a Vogue ao topo. Se Anna Wintour apóia um estilista, o sujeito vende horrores. Os que ela critica caem em desgraça, relegados ao esquecimento. No filme, um estilista iniciante resume: "Anna é a Madonna da moda".
Grace Coddington é o coração da Vogue. Amável e engraçada, contrasta com a secura e frieza de Anna Wintour. No filme, quando estilistas e funcionários da revista gaguejam e tremem diante dos olhares fuzilantes de uma Anna irritada (e são vários os que a câmera capta ao longo do documentário), é Grace que consola e aconselha quem tomou um coice da editora-chefe (sempre tirando um sarrinho da chefona). E se Anna Wintour é Madonna, a galesa Grace é o Tim Burton da moda. Enquanto Anna usa roupas impecáveis, Grace é descabelada (como Tim Burton), sempre vestindo preto (como Tim Burton), o mesmo sapato todos os dias, enrugada ao extremo, apaixonada por arte. E Grace é uma verdadeira artista. É ela quem idealiza temas fantásticos para ensaios de moda, selecionando fotógrafos, pesquisando e combinando locações, cenários, mobília, iluminação e, obviamente, roupas que remetem a séculos ou décadas passadas, a pinturas renascentistas ou impressionistas, a fotografias antigas e, sua maior diversão, a ilustrações de contos de fadas. Tim Burton, adaptando "Alice no País das Maravilhas" para o cinema, deveria se inspirar na Alice e no mundo maravilhoso que Grace criou para as páginas da Vogue. Dá vontade de entrar nas fotos. Grace transformou a atriz Drew Barrymore em princesa da Bela e a Fera. Vestiu Keira Knightley como a Dorothy de Judy Garland e a colocou dentro do mundo encantado do mágico de Oz. Escalou Lady Gaga para ser a bruxa de João e Maria (foto acima e aqui). E se superou ao contar a história de Romeu e Julieta através de fotografias que, de tão delicadas, detalhadas e magnificamente iluminadas, parecem pinturas (foto acima e aqui). Nesse mês de janeiro, o mote do editorial de moda da Vogue é o rock. Anna e Grace, filhas do Swinging London e herdeiras da beatlemania, puseram a molecada do The Horrors, Vampire Weekend, MGMT, Beirut e Mika posando com uma modelo (não por acaso, desde dezembro rola em Londres uma exposição de fotos dos Rolling Stones, Kinks e outras bandas do Swinging London dando as caras em fotos de moda feminina dos anos 60).
O documentário procura revelar a relação espinhosa entre Anna e Grace. Grace se aborrece sempre que Anna interfere em seu trabalho, geralmente se recusando a publicar fotos lindíssimas sem maiores explicações. Grace sabe que é essencial para a revista, então, é a única entrevistada no filme que se atreve a reclamar da chefe. O filme, aliás, não foi encomendado por Anna Wintour, e sim pela editora que publica a Vogue. De início, tanto Anna como Grace não gostaram da ideia de trabalhar testemunhadas e seguidas por um cameraman. E Anna não finge. Não faz esforço para ser agradável na redação que comanda só para não ficar mal na fita. Também não esconde desapontamento e mágoa ao confessar que seus irmãos, jornalistas considerados "sérios", não valorizam e nem se importam com seu trabalho (e muito menos a filha adolescente, que deixa bem claro que prefere ir para a faculdade de direito a trabalhar com a mãe). E, da mesma forma que Grace, o diretor RJ Cutler não se intimida em cutucar Anna Wintour: ao filmá-la durante um desfile, sentada na primeira fila, óculos escuros, braços cruzados, expressão de tédio e rígida como uma estátua, a música escolhida como pano de fundo é da banda Ladytron. "Everything you touch, you don't feel", canta a vocalista Helen Marnie enquanto a câmera focaliza uma Anna cercada de pessoas (e por uma aura de gelo, distância e solidão). Mas com certeza Anna Wintour não se importa. Afinal, não perdeu a pose nem quando uma ex-assistente escreveu "O Diabo Veste Prada", um (ótimo) livro de ficção que narra a história de uma editora de moda carrasca e insuportável. Temendo processo, a autora negou que a tal editora de mentira fosse, na verdade, Anna (quando qualquer um sabia que era). E Anna Wintour não passou recibo: compareceu à pré-estréia de gala do filme inspirado no livro, cumprimentou a atriz Meryl Streep (que foi indicada ao Oscar por sua interpretação da diaba), foi fotografada sorrindo. E vestindo Prada. Mais rock'n roll, impossível. Madonna não faria melhor.