Wednesday, September 23, 2009

Berlim, Mark

O alemãozinho gente-fina me avisou que a barra estava limpa: "vai agora, não tem ninguém vendo!". Rezando para não ser vista, eu passei pela cortina preta, subi a escadinha caracol na velocidade de um raio. Após o último degrau, o início de um corredor estreito: uma fila de portas na parede esquerda e outra na parede direita. Lá na frente, direita, luz saía de uma sala aberta. Talvez fosse aquela. Corri, livro na mão. Brequei as botas no carpete quando cheguei na entrada. Tinha gente dentro. Em um canto, pessoas sentadas em semicírculo olharam para mim, expressão de dúvida: "quem é você?". No canto oposto, de pé e ao lado da pizza sobre a mesa, ele me viu. "Ah...é você.", disse. E Mark Lanegan sorriu.

Meu, tanto lugar bacana em Berlim e Soulsavers fechou de fazer show logo no FritzClub im Postbahnhof. Não que o clube seja ruim. Estilo galpão, jardinzinho pra tomar cerveja, bar com pista para DJ. Legal. Mas eu desconfiei que havia ido parar na PQP não só porque o Fritz fica quase sob a linha do trem, solitário em um trecho de avenida no qual no pasa nada. Há outra razão. Vizinho ao clube, a perder de vista sentido norte, sentido sul, o Muro. Metros e metros de concreto ainda intactos. Uma massa de cimento e tijolos, que um dia cortou uma cidade ao meio, colorida por grafites. Pouco se vê dos restos do Muro no Centro turístico e residencial de Berlim. Símbolo da vergonha, foi quase todo destruído. Mas nas imediações do FritzClub ele foi poupado. O local é tão deserto que, acho, na data da Queda não havia uma alma presente para dar umas boas marretadas naquele troço.

No corredorzinho, Mark Lanegan encostou na parede, flexionou uma das pernas e me encarou. Levantou a mãozona tatuada e, antes mesmo que eu perguntasse, foi abrindo os dedos à medida em que contava: "Londres....São Paulo....Lisboa....eu me lembro de você em todos esses lugares. E agora aqui. E você sempre me dá livros!". Bom, faltou Bruxelas (em Bruxelas ele não me viu. Só porque eu me manquei e o deixei em paz, hehe). Fiquei com vergonha, quase soltei um..."ah, mas hoje eu apenas passava por essa rua tão...tão...ehh...interessante, fazendo um emocionante city tour embaixo do viaduto sujo e mijado da linha do trem, quando vi três pessoas aí fora no portão, concluí que o galpão bombava e resolvi entrar. Estava procurando o banheiro quando - ah, que mundo pequeno - te vi aí entretido com essa mesa de comida gordurosa!". Ao invés da piadinha, minha voz mais cor-de-rosa, florida e dengosa: "Noooossa....você se lembra mesmo de mim, hein!!".

Comentei sobre o show de São Paulo, que foi tão divertido, gente berrando enlouquecida. "São Paulo! Eu ADOREI aquele lugar!". Lançou um olhar para meu braço esquerdo, sorriu. Uau. Senti sinceridade, ele não estava elogiando Sampa só por educação. Putz, isso que dá beber pouco; se eu não tivesse tomado apenas uma Heineken, teria saído isso: "Que coincidência, meu Deus, eu também ADORO São Paulo. Por acaso, moro lá! A pizza é maravilhosa! Moremos os dois lá, então! A cidade é cinza, perfeita para inspirar suas músicas depressivas! Visto de permanência? Tá bem, vai, eu não me importo de casar com você, tudo em prol da Música!".

E por que não morar em São Paulo? Nada impossível. Chrissie Hynde, do Pretenders, teve (ou tem) um apê no Centro da cidade. Nick Cave foi meu vizinho, morou na Pompéia e vivia nos botecos. Aliás, vi o Cave em Londres, assinando autógrafos em uma livraria. Bronzeado, testa duas vezes maior do que o resto do rosto. Jeitão simpático e atencioso. Eu quase entrei na fila de fãs, mas então teria que comprar o novo livro dele. Que conta a história de um coelho psicótico e tarado. Meu amor ao dinheiro bem gasto falou mais alto.

- "Mark...".
- "Humm..?"
- "Você tá fazendo um disco novo?"
Ele fez uma cara engraçada, tipo..."ai, se eu ganhasse um dólar cada vez que me perguntam isso..."
- "Estou. Entre uma viagem e outra das turnês eu ando compondo umas músicas..."
- "Oba! Isso é bom, porque você viaja bastante!"
- "Eu, é!? Pois é. E você também!!"
E eu nunca vi Mark Lanegan rindo tanto...

Ah, foi tão legal! No fim, Mark Lanegan ganhou mais um livro assinado por mim (que devo ser a única fã do mundo que deu mais autógrafos para o seu ídolo, ao invés de ter pedido - 4 dados contra 1 recebido no braço). E - que bonitinho! - ficou vermelho na hora da despedida. Igualzinho ao Mathias ficava, meu coleguinha no pré-primário, em 1981.

Monday, September 14, 2009

Jello Biafra em Londres




“Lasciate ogni speranza, voi ch’entrate”. Em sua obra principal, “A Divina Comédia”, o poeta italiano Dante Alighieri (1265-1321) alertou os infelizes prestes a atravessar os portões do Inferno: “Deixem toda esperança, vocês que entram”. Londres, noite de 8 de setembro. As portas vai-e-vem do 02 Islington Academy foram abertas para me dar passagem. Uma massa de ar quente grudou em mim. Porão lotado, almas suadas se acotovelando na disputa por uma visão mínima do palco. Um urro abismal quase arrebentou meus tímpanos: o vocalista da banda de abertura cantava. Não entendi uma só palavra gritada pelo moço exibindo corte de cabelo moicano e impressionantemente idêntico à cantora Cássia Eller. Lembrei então da advertência dantesca. O que fazer? Voltar? O porteiro olhou pra mim, esperando. Já que eu estava no inferno, melhor abraçar logo o capeta, vai. Tá aqui meu ingresso, moço.
Você é mulher no meio de uma platéia punk 98% masculina. Os 2% restantes são compostos por damas de aparência tão frágil quanto a de gladiadoras. Boa notícia: um banheiro sem filas, vazio e limpo do início ao fim do show, só pra você. Péssima notícia: comece a se preocupar com sua integridade física, porque, com muita sorte, você será apenas estuprada. O mezanino foi a salvação: lá em cima, isolados do gentio, somente punks de boutique que pelo menos pareciam saber ler e escrever. E que tinham tomado no mínimo um banho nas últimas duas semanas. Arranjei um lugar bom pra ver o show.
E o show era Jello Biafra com sua recente banda, The Guantanamo School of Medicine. Jello Biafra é Eric Reed Boucher, 51 anos, ex-vocalista da banda punk californiana Dead Kennedys, que esteve em atividade durante a década de 80. Então o clima era de saudosismo: olhando para a concentração de homens lá embaixo, o número de cabeças calvas e grisalhas se destacava entre a minoria de cabelo verde, espetado por claras de ovos e sabão.
Uma hora esperando, a banda entrou. Só tios. Jello veio depois, pulando, vestindo jaleco branco sobre a camiseta preta e calça jeans. Todo sujo de sangue falso, concentrado nas luvas cirúrgicas que cobriam as mãos. A velharada entrou em êxtase, formou-se a tradicional roda de pogo (a dança empurra-empurra punk, dessa vez na hilária versão geriátrica). Santo mezanino.
Entre uma música e outra, Jello discursava contra as atrocidades do governo Bush. No meio do show, tirou o avental e as luvas, mostrando a camiseta preta com mensagem: I support Iraq veterans against the war. Dançando, Jello parecia um mímico, contorcendo o rosto com caretas, gesticulando, simulando estar sendo torturado.
O set list do show? Sei lá! Fui ao show só para ver o Jello. O álbum de estreia do Guantanamo School vai ser lançado em outubro. Do Dead Kennedys, conheço apenas “California Über Alles”. Foi durante essa música que Jello voou sobre fãs. Foi bizarro: um tiozinho meio careca, dono de uma senhora pança, dando um mosh pra cima da roda de pogo formada por outros tios pelancudos e barrigudos. O roadie não sabia se ria ou se salvava o patrão das mãos enrugadas da galera. Fez as duas coisas.
Intervalo para o bis. No corredor lateral ao palco, uma mulher de cento e trinta anos de idade, vestindo minissaia e blusinha regata, estava desmaiada e tentava ser reanimada pelo staff. Ela bateu a cabeça enquanto balançava os dreadlocks compridos, que batiam na altura da cintura. Mas foi só Jello retornar ao palco para a Medusa punk ressuscitar e voltar a chacoalhar os minhocões. Temperatura explodindo os termômetros, Jello se livrou da camiseta, orgulhoso em revelar a gravidez de seis meses. Incansável, cantou mais três ou quatro músicas (que me pareceram todas iguais...).
Jello e a banda voltaram para o segundo bis, a platéia delirou. Mas eu já estava satisfeita. E faminta. Dei uma passadinha no meu banheiro particular, ainda perfumado de desinfetante e abastecido de papel. Desviei da fila que se estendia diante da porta do banheiro dos desafortunados do sexo oposto, pisei em vários pés até alcançar a porta de saída. E fui embora do inferno, catando as esperanças deixadas na chapelaria. Foi divertido. A banda é competente, acho que o disco novo vai ser aprovado pelos fãs do Dead Kennedys. E Jello é figuraça. Cinquentão plugado na tomada, punk sempre inconformado, esperançoso para que sua música seja entendida como uma denúncia sarcástica contra a hipocrisia da sociedade e política americanas. Bacana. Tiozinho, mas ainda querendo mudar o mundo. Naquela noite, voltei ao mundo dos vivos sorrindo. Contente por ter descoberto que sim, de boas intenções, o inferno está cheio.