Tuesday, April 29, 2008

Quando a Arte vira Rock, Parte CXXV



"Green Sofa", de Ron Blumberg, e Mark Lanegan.

P.S. Especialmente dedicado ao barbeiro do Lanegan, que podou essa pouca vergonha.


Wednesday, April 23, 2008

Caras Carentes e Dom João VI




"Seu guarda/Eu não sou vagabundo/Eu não sou delinqüente/Sou um cara carente/Eu dormi na praça/Pensando nela/Seu guarda/Seja meu amigo/Me bata, me prenda/Faça tudo comigo/Mas não me deixe/Ficar sem ela..." ("Dormi na Praça", Bruno & Marrone).

"I'm so lonely, I'm gonna get caught by the police for company." ("Speed On The M9", Malcolm Middleton).

- "Toma, Ana. Resolve você."
- "O que é isso?"
- "Ficha de atendimento ao público. O estagiário preencheu."
- "Por quê você tá rindo?"
- "Leia, ué!"

"Comparece nesta Promotoria de Justiça Sebastião de tal. Cinqüenta e seis anos, aposentado. Diz que quer ser preso. Conta que sua mulher pediu a separação porque não o quer mais. Afirma que está disposto a assumir a culpa por qualquer crime e a assinar qualquer confissão, pois quer ficar pelo menos três anos preso."

Sete anos como promotora de justiça. Até então gente presa pedia para ser solta. Solto pedindo para ser preso...primeira vez que vi. O que fazer? Consolar o candidato a detento? Tentar a sua reconciliação com a desalmada? Mandar um "ela não o merece!" (e se não merecesse mesmo...e merecesse coisa melhor?)? Pedir ajuda para as cartas!? Para os universitários?? O que fazer?
Dom João VI já dizia: "quando não sabemos o que fazer, o melhor a fazer é não fazer nada!". Enquanto eu cumpria à risca o conselho desse personagem histórico tão fundamental e expressivo, lembrei de...Bruno e Marrone, hehe. A dupla sertaneja que...hã..."celebrizou" a canção "Dormi na Praça", de autoria dos ilustres desconhecidos Fátima Leão e Elias Muniz (thanks pela informação, Google)! Na música, Cara Carente dorme na praça e é acordado por Seu Guarda, a quem implora para trazer a sua (dele, não "sua") amada de volta. A bizarra súplica é tudo aquilo que todo miliciano metido a Capitão Nascimento sonha ouvir de um malfeitor. Um dos mais belos e tocantes versos da moderna MPB. Acompanhe e se emocione comigo: "Seu guarda, seja meu amigo, me bata, me prenda, faça tudo comigo! Mas não me deixe...ficar sem ela...".
Pois bem. O tempo passou. E eu continuei cultivando a inércia pregada pelo comilão esposo de Carlota Joaquina. Dias atrás, estava eu em Bruxelas, Bélgica. E foi lá, no improvável ex-Jardim Botânico da cidade, que encontrei um companheiro de infortúnio de Cara Carente e Seu Sebastião. Malcolm Middleton. Explico: em 1797, um jardim botânico foi inaugurado na região conhecida por Cidade Baixa. Em 1826 foi desativado, pois um outro acabou sendo aberto fora da cidade. Foi então construída uma redoma de vidro (na foto, lado direito), hoje um centro cultural. Lá rolam exposições, cinema, peças de teatro...shows de rock! É o Le Botanique (http://www.botanique.be/). Foram os vidros do Le Botanique que Lisa Kekaula, vocalista do Bellrays, quase estilhaçou com sua voz super poderosa. Foi em um dos palcos do lugar que descobri que Calvin Harris não é uma espécie de irmão caçula de Justin Timberlake, mas felizmente uma espécie de irmão caçula de James Murphy que teve a luminosa idéia de, ao vivo, melhorar seu som rock-disco adicionando guitarras ao show. Virou LCD Soundsystem misturado com Primal Scream. E conheci o escocês Malcolm Middleton, que um dia esteve na dupla "Arab Strap", hoje seguindo carreira solo. Meio gordinho, meio careca, meio narigudinho. E uma baixa estima....que chega a ser engraçada. Toca violão, acompanhado por Stevie, no violoncelo, e pela fofa Jenny, da banda Strike the Colours, no violino (http://www.myspace.com/strikethecolours). Melodias folk muito bem feitas, músicas lindas (http://www.myspace.com/malcolmmiddleton). Canções com letras...bem, Middleton sofre. Por tudo. Sempre, em todas as músicas. Antes, porque acredita que não vai ganhar a menina. Durante, porque tem a certeza de que vai perdê-la. E depois, porque de fato perde. "Onde você vai? Não está gostando?", interrompe a execução da música e pergunta o inseguro MM a um rapaz que estava saindo da sala onde rolava o show. "Banheiro. Posso?", devolve o cara. "Ah, pode vai". Minutos depois, outro: "Vou comprar cerveja....mas volto, viu!", tranqüilizou o fã. MM é sensível. "..how can you like me/With this hand and these arms/how can this shallow freak be accused of having charm/The way the earthquakes land when I blow my nose/How long can I be myself before you get up and go?", canta o Cara Carente Escocês em "Devastation".
Na ultra-pessimista "Break My Heart", MM já prevê e antecipa a dureza que seria ficar sem ela: "You’re gonna break my heart I know it
But if you don’t
You’re gonna break my run of unhappiness and destroy my career
I’d rather feel full than sing these shit songs
I’ll sell my guitar and never look back
You’re gonna break my heart I know it
And when you do
I’m going to run to the country and plug my ears
I’d rather have you than sing these shit songs
I’ll sell my guitar and get an education and never look back
You’re gonna break my heart I know it
If you don’t break my heart I’ll do it myself
And when I do
I’m going to count all the numbers for all the years
If I don’t have you I’m condemned to sing shit songs
I’ll fuck my guitar and drink myself deaf
It’ll be an education and I’ll never look back
I don’t want to sing these shit songs anymore"

Em 100% das canções do show, MM é loser. Uau! Traduções e versões para o português sem dúvida garantiriam a longevidade da carreira de Bruno e Marrone. O espírito é o mesmo: "I'm so lonely. I gonna get caught by the police for company". Ou será "Speed On The M9" um plágio de "Dormi na Praça"? Malcolm Middleton também prefere ser preso a enfrentar a desilusão. Como o Seu Sebastião...

Ah!! Seu Sebastião! Quase terminei o post esquecendo de contar o fim da história do Homem que Queria ser Preso. Lá vai:

- "Oi. Foi você o estagiário que conversou com aquele senhor outro dia?"
- "Que senhor?"
- "Aquele que..hã...queria ser preso. Eu queria saber se..."
- "Ah tá! A mulher dele apareceu aqui no fórum, pediu desculpas pelo comportamento do marido, disse que ele queria comovê-la. Tudo resolvido! Vão voltar a viver juntos!"

Ufa! Caso encerrado e arquivado sem minha intervenção! Ele não ficou sem ela!

Dom João VI...gênio!!

Wednesday, April 16, 2008

Paraíso



"Seus olhos, donde a chama eternal é partida,
Como se olhassem longe estão no firmamento;
E não os vê jamais, por sobre o pavimento,
Inclinar vagamente a fronte sucumbida.
Atravessam assim a infinda escuridade,
Esta irmã do silêncio imutável, cidade!
Enquanto em torno a nós é um lamento o teu canto."
("As Flores do Mal", "Os Cegos", Charles Baudelaire)

"Not feelin´any pain
But I know that it´s real
Never see the color of the day
In the darkness I kneel."
("Praying Ground", Mark Lanegan)


Álcool. E as drogas eleitas pelo século retrasado: ópio e haxixe. Charles Baudelaire, o maldito poeta francês, esteve vivo no paraíso. Preferiu ir embora. Antes de morrer em Paris, no ano de 1867, relatou suas experiências. Publicada pela primeira vez em 1860, a obra "Les Paradis Artificiels" é um conjunto de ensaios sobre os efeitos dos entorpecentes dos quais fez uso. Os "paraísos artificiais". Prazer com prazo de validade que os homens ansiavam para escapar da mediocridade existencial à qual estavam condenados. Uma fonte mórbida de felicidade que cessava quando o potencial inebriante dos tóxicos chegava ao fim, trazendo depressão e calafrios. Baudelaire quis entender e explicar as motivações mais profundas que conduzem alguém ao falso Nirvana das drogas.


"A heroína me salvou do alcoolismo", explicou ironicamente Mark Lanegan, em uma entrevista de 2004, sua motivação mais profunda para regulares visitas ao Éden. Lanegan, nascido em 1964 em uma pequena cidade de Washington, EUA, filho de uma família desestruturada, passou a adolescência furtando comerciantes locais e entornando latas e garrafas de álcool. Aos vinte anos, foi alertado por um médico de que não chegaria aos trinta se não largasse a bebida. Largou. Com ajuda da heroína. Em 1986, Mark Lanegan e amigos montaram o "Screaming Trees", banda depois associada ao movimento grunge, junto com Pearl Jam, Mudhoney, Soundgarden. E Nirvana. Inicialmente, Lanegan tocaria bateria. Péssimo no manejo das baquetas, assumiu os vocais. Do "Screaming Trees" e de sua própria carreira solo, paralela à banda. A voz de Mark Lanegan - absurdamente rouca, soturna, marcante e única - era perfeita para as composições bem diferentes do rock de garagem do "Screaming Trees": canções com levada blues e folk. Tristes e lindas.

1996, fim do "Screaming Trees". Desentendimentos e brigas: Lanegan reclamava que trabalhava por todos os outros membros. Dependência química. Mark Lanegan sabia que amigos estavam morrendo por escolher o mesmo caminho. Como Kurt Cobain, do Nirvana. Em 1997, acontece a prisão por posse de drogas. O paraíso havia se transformado no inferno, era hora de partir. E ele partiu. Os cigarros salvaram Lanegan da heroína. Hoje seu único - e pesado - vício. Como Baudelaire, Mark Lanegan escreveu seu testemunho a respeito do vício em entorpecentes. Mas escreveu na forma de músicas que cantou, e canta, com as mesmas cordas vocais que a heroína e o fumo ajudaram a arruinar e - espantosamente - a fazer a voz tão bela. Em "Methamphetamine Blues", faixa do disco "Here Comes That Weird Chill", de 2003, Mark Lanegan confessa: "I don't want to leave this heaven so soon". Memórias de um lugar ilusório e artificial, que felizmente ele soube deixar para trás.
-------------------------------------------------------------------------------------
Bruxelas, nove e quinze da noite, 11 de abril de 2008. Eu aos pés de Mark Lanegan. No sentido literal da expressão "aos pés". E figurado também. Primeira fila do show do "Gutter Twins", confortavelmente (belgas, civilizados, não empurram, não encostam). "Gutter Twins" é a dupla Mark Lanegan e Greg Dulli, amigos das antigas. Greg Dulli, ex-líder da finada "Afghan Whigs", atualmente vocalista e guitarrista do "Twilight Singers". É o encontro do rock-soul, de Dulli, com o rock-blues, de Lanegan. De dois brothers que se ligaram de que o paraíso um dia prometido....era a sarjeta.
A menos de dois metros de distância, na minha frente, Mark Lanegan não enxerga. Depois de entrar no palco, vai até o microfone, que segura com uma das mãos. A outra, no suporte. Ergue o queixo, fecha os olhos e canta no escuro. O tempo todo. Parado, quase não movimenta o corpo. A voz, áspera ao extremo, toma conta do Ancienne Belgique e rivaliza com a guitarra de Greg Dulli. Imerso em um paraíso particular, Lanegan canta enquanto permace alheio à realidade. Não sorri, não cumprimenta o público, não acompanha o playlist colado no chão, ao seu lado (mas que eu getilmente arranquei das mãos do roadie, quando o show acabou). Quando um fã invade o palco, passa um dos braços em volta de seus ombros e cochicha no seu ouvido...ele continua com os olhos fechados, mãos no microfone, cantando imóvel. Sozinho no bis (Greg Dulli abandonou o palco e foi levado ao hospital, desidratado e hipotérmico), tinha conquistado Bruxelas, cidade onde, anos e anos atrás, Baudelaire afundou no vício. Mark Lanegan não interage com a platéia, não se movimenta no palco, não quebra (e não toca) instrumentos musicais. Não lança novo trabalho solo desde 2004. Não tem banda fixa, apenas contribui com amigos (atualmente além de Dulli, Isobel Campbell, do "Belle and Sebastian", "Soulsavers"), permanece calado em entrevistas, não mantém site oficial (conta cancelada na web...por falta de pagamento!). Mark Lanegan, hoje limpo, desafia todos os padrões de rebeldia do rock. De olhos fechados, na escuridão. Cool.
Bruxelas, dez e meia da noite, 11 de abril de 2008. Eu, cotovelo apoiado no palco, cabeça sustentada pela palma na mão. Aos pés de Mark Lanegan quando a última canção chega ao fim.
Lamento.
Eu não queria deixar o paraíso tão cedo.